sexta-feira, 30 de julho de 2010

A Mitologia Grega - Cupido e Psique.



Certos rei e rainha tinham três filhas. A formosura das duas mais velhas era fora do comum, mas a beleza da mais moça era tão maravilhosa que não existem palavras para expressá-la como merece. A fama de tal beleza foi tão grande que estrangeiros de países vizinhos iam, em multidões, admirá-la, assombrados, rendendo à jovem homenagens que só se devem à própria Vênus. Na verdade, Vênus viu os seus altares desertos, enquanto os homens voltavam sua devoção à jovem virgem. Quando esta passava, as pessoas entoavam-lhe loas e semeavam seu caminho de coroas e flores. O desvirtuamento de uma homenagem devida apenas aos poderes imortais, para exaltação de uma simples mortal, ofendeu profundamente a Vênus. Sacudindo com indignação a linda cabeleira, ela exclamou: — Terei, então, de ser eclipsada em minhas honras por uma jovem mortal? Em vão aquele pastor real, cujo julgamento foi aprovado pelo próprio Jove, concedeu-me a palma da beleza sobre minhas ilustres rivais, Palas e Juno. Ela não poderá, contudo, usurpar minhas honras tranqüilamente. Dar-lhe-ei motivo para se arrepender dessa beleza injustificada. Chama, então, seu filho alado Cupido, bastante ardiloso por sua própria natureza, e o exalta e provoca-o ainda mais por seus cumprimentos. Mostra-lhe Psique e diz:
— Castiga, meu filho, aquela audaciosa beleza; assegura à tua mãe uma vingança tão doce quanto foram amargas as injúrias recebidas. Infunde no peito daquela altiva donzela uma paixão por algum ser baixo, indigno, de sorte que ela possa colher uma mortificação tão grande quanto o júbilo e o triunfo de agora.
Cupido preparou-se para obedecer às ordens maternas. Há duas fontes no jardim de Vênus, uma de água doce, outra de água amarga. Cupido encheu dois vasos de âmbar, cada um com água de uma das fontes, e suspendendo-os no alto de sua aljava, dirigiu-se ao quarto de Psique, que encontrou dormindo. Derramou, então, algumas gotas de água da fonte amarga sobre os lábios da jovem, embora ao vê-la quase fosse tomado de piedade; depois, tocou-a de lado com a ponta de sua seta. Ao contato, Psique acordou e abriu os olhos diante de Cupido (ele próprio invisível), que, perturbado, feriu-se com sua própria seta. Descuidando-se do ferimento, o único pensamento do deus consistia em desfazer o mal que fizera, e derramou as balsâmicas gotas de alegria sobre os sedosos cabelos da jovem. Psique, daí em diante desdenhada por Vênus, não tirou vantagem de todos os seus encantos. É bem certo que todos os olhos a contemplavam com admiração e todas as bocas a exaltavam; mas nenhum rei, príncipe ou plebeu apresentava-se para pedi-la em casamento. Suas duas irmãs mais velhas, muito menos belas, de há muito se haviam casado com dois príncipes herdeiros, enquanto Psique, em seus aposentos, deplorava a solidão, irritada com uma beleza que, embora trazendo uma prodigalidade de louvores, não conseguira despertar amor. Seus pais, receosos de que, inadvertidamente, tivessem incorrido na ira dos deuses, consultaram o oráculo de Apolo, que respondeu: — A virgem não se destina a ser esposa de um amante mortal. Seu futuro marido a espera no alto da montanha. É um monstro a quem nem os deuses nem os homens podem resistir. Essa terrível predição do oráculo encheu a todos de desânimo, e os pais da jovem entregaram-se ao desespero. Psique, porém, disse: — Por que me lamentais, queridos pais? Devereis antes ter sofrido quando todos me cumulavam de honras indevidas e a uma voz me chamavam de Vênus. Percebo agora que sou vítima daquele nome. Resigno-me. Levai-me àquele rochedo a que me destinou meu desventurado destino. E, assim, tendo sido preparadas todas as coisas, a donzela real tomou seu lugar no cortejo, que mais parecia um funeral que um casamento e, com seus pais, entre as lamentações do povo, subiu à montanha, no alto da qual deixaram-na só, voltando para casa, com os corações afogados em tristeza.
Enquanto Psique estava de pé no alto da montanha, tremendo de medo e com os olhos rasos de lágrimas, o gentil Zéfiro a levantou acima da terra e a conduziu suavemente até um vale florido. Pouco a pouco, a jovem acalmou-se e estendeu-se na relva, para dormir. Ao despertar, refeita pelo sono, olhou em torno e viu, bem perto, um lindo bosque de árvores altas e majestosas. Entrou no bosque e, no meio dele, encontrou uma fonte, de águas puras e cristalinas, e, mais adiante, um magnífico palácio, cuja augusta fachada dava a impressão de que não se tratava de obras de mortais, mas da venturosa morada de algum deus. Tomada de espanto e admiração, a moça aproximou-se do palácio e aventurou-se a entrar. Cada objeto que viu a encheu de assombro. Colunas de ouro sustentavam o teto abobadado e as paredes eram ornadas de baixos-relevos e pinturas de animais selvagens e cenas rurais, representados de modo a deleitar os olhos do espectador. Continuando a avançar, Psique percebeu que, além dos aposentos majestosos, havia outros repletos de tesouros e de todos os mais belos produtos da natureza e da arte. Enquanto admirava, uma voz se fez ouvir, embora a jovem não visse quem quer que fosse, dizendo estas palavras: — Soberana dama, tudo que vês é teu. Nós, cujas vozes ouves, somos teus servos e obedeceremos às tuas ordens com a maior atenção e diligência. Retira-te, pois, para teu quarto e repousa em teu leito e, quando tiveres descansado, poderás banhar-te. A ceia te espera no aposento adjacente, quando te aprouver ali te assentares. Psique atendeu às recomendações dos servos invisíveis; depois de repousar e banhar-se, sentou-se no aposento contíguo, onde imediatamente surgiu uma mesa, sem qualquer servidor visível, com os pratos e vinhos mais deliciosos. Também seus ouvidos foram deleitados com música tocada por executantes invisíveis; um dos quais cantava, outro, tocava alaúde, enquanto os demais completavam a maravilhosa harmonia de um coro perfeito. Psique ainda não vira o marido que lhe estava destinado. Ele vinha apenas nas horas de escuridão e partia antes do amanhecer, mas suas expansões eram repletas de amor e inspirou nela uma paixão semelhante. Muitas vezes ela implorava ao amante que ficasse e a deixasse olhá-lo, mas ele não consentia. Ao contrário, recomendou-lhe que não fizesse qualquer tentativa para vê-lo, pois ele tinha bons motivos para se esconder. — Por que queres me ver? — perguntava. — Podes duvidar de meu amor? Tens algum desejo que não foi satisfeito? Se me visses, talvez fosses temer-me, talvez adorar-me, mas a única coisa que peço é que me ames. Prefiro que me ames como igual a que me adores como deus. Estes argumentos de certo modo aquietaram Psique, durante algum tempo, e, enquanto tudo foi novidade, ela se sentiu feliz. Finalmente, porém, a lembrança de seus pais, que ignoravam seu destino, e das irmãs, impedidas de compartilhar com ela as delícias de sua situação, dominou-lhe o espírito, e ela começou a considerar o palácio apenas como uma esplêndida prisão. Quando o marido apareceu certa noite, ela lhe contou seus sofrimentos e acabou, embora a custo, obtendo seu consentimento para que suas irmãs pudessem ir vê-la. Assim, chamando Zéfiro, ela lhe transmitiu as ordens do marido e ele, obedecendo prontamente, trouxe as irmãs de Psique, através da montanha, para o vale onde ficava o seu palácio. Elas a abraçaram e a jovem retribuiu-lhes as carícias. — Vinde — disse Psique. — Entrai em minha casa e disponde do que vossa irmã tem para vos oferecer. Então, tomando-as pelas mãos, levou-as a seu palácio de ouro e entregou-as aos cuidados dos criados invisíveis, a fim de que se banhassem, fossem servidas à mesa e admirassem os numerosos tesouros. A vista daqueles dons celestiais fez com que a inveja penetrasse no coração das duas, vendo que sua irmã mais moça possuía tais riquezas e esplendores, muito superiores aos seus. Fizeram a Psique inúmeras perguntas, entre outras, que espécie de pessoa era seu marido. Psique respondeu que era um belo jovem, que geralmente passava o dia caçando nas montanhas. As irmãs, não satisfeitas com essa resposta, fizeram-na confessar que nunca o vira. Trataram, então, de encher o coração da jovem de sombrias desconfianças. — Lembra-te — disseram — que o oráculo pitiano anunciou que tu te casarias com um monstro horrível e tremendo. Os habitantes deste vale dizem que teu marido é uma terrível e monstruosa serpente, que te nutre, por enquanto, com alimentos deliciosos a fim de devorar-te depois. Ouve nosso conselho. Mune-te de uma lâmpada e de uma faca afiada; esconde-as de maneira que teu marido não possa achá-las, e, quando ele estiver dormindo profundamente, sai do leito, traze a lâmpada e vê, com teus próprios olhos, se o que dizem é verdade ou não. Se é, não hesites em cortar a cabeça do monstro e recuperares tua liberdade. Psique resistiu a esses conselhos tanto quanto pôde, mas eles não deixaram de impressioná-la e, depois que suas irmãs se retiraram, o efeito de suas palavras e a própria curiosidade da jovem tornaram-se bastante fortes para que ela pudesse resistir. Assim, preparou a lâmpada e uma faca afiada e escondeu-as do marido. Quando ele adormeceu, Psique levantou-se sem fazer ruído e, trazendo a lâmpada, divisou não um monstro horripilante, mas o mais belo e encantador dos deuses, com madeixas louras caindo sobre o pescoço cor-de-neve e as faces róseas, um par de asas nos ombros, mais brancas que a neve, de penas brilhantes como as flores da primavera. Ao abaixar a lâmpada para ver o rosto do marido mais de perto, uma gota de óleo ardente caiu no ombro do deus, que, assustado, abriu os olhos e encarou Psique. Depois, sem dizer uma palavra, abriu as brancas asas e voou através da janela. Psique, na vã tentativa de segui-lo, caiu da janela ao solo. Cupido, vendo-a estendida no chão, parou o vôo por um instante e disse: — Tola Psique, é assim que retribuis meu amor? Depois de haver desobedecido às ordens de minha mãe e te tornado minha esposa, tu me julgavas um monstro e estavas disposta a cortar-me a cabeça? Vai. Volta para junto de tuas irmãs, cujos conselhos pareces preferir aos meus. Não lhe imponho outro castigo, além do de deixar-te para sempre. O amor não pode conviver com a desconfiança. Assim dizendo, ele continuou seu vôo, deixando a pobre Psique estendida no chão e lamentando-se tristemente. Quando se recompôs um pouco, olhou em torno, mas o palácio e os jardins haviam desaparecido, e ela se viu num campo aberto a pequena distância da cidade onde moravam suas irmãs. Procurou-as e contou-lhes toda a história do seu infortúnio, com o que as desprezíveis criaturas, fingindo pesar, na verdade se regozijavam.
— Agora, talvez ele escolha uma de nós — disseram. Levadas por essa idéia, e sem dizer uma palavra sobre suas intenções, cada uma delas levantou-se cedo na manha seguinte, dirigiu-se ao alto da montanha e convocou Zéfiro, para recebê-la e levá-la a seu senhor. Depois, atirou-se no ar e, não sendo sustentada por Zéfiro, caiu no precipício e se despedaçou. Enquanto isto, Psique caminhava noite e dia, sem repouso nem alimentação, à procura do marido. Tendo avistado uma imponente montanha, em cujo cume havia um templo magnífico, disse consigo mesma, suspirando: — Talvez meu amor, meu senhor, habite ali. E, assim dizendo, dirigiu-se ao templo. Mal entrara, viu montões de trigo, quer em espigas, quer em feixes, misturados com espigas de cevada. Espalhados em torno, havia foices e ancinhos e todos os demais instrumentos da ceifa, em desordem, como que atirados descuidadamente pelas mãos de ceifadores cansados, nas horas escaldantes do dia. A piedosa Psique pôs fim àquela confusão indizível, separando e colocando cada coisa em seu lugar devido, convencida de que não deveria negligenciar o culto de nenhum deus, mas, ao contrário, procurar, com sua diligência, cultuá-los todos. A santa Ceres, de quem era aquele templo, vendo a jovem tão piedosamente ocupada, assim lhe falou: — Ó Psique, em verdade digna de nossa piedade, embora eu não possa proteger-te contra a má vontade de Vênus, posso ensinar-te o melhor meio de evitar desagradá-la. Vai e voluntariamente rende-te à tua deusa e soberana e trata de conseguir-lhe o perdão pela modéstia e submissão, e talvez ela te restitua o marido que perdeste. Psique obedeceu à ordem de Ceres e dirigiu-se ao templo de Vênus, tentando fortalecer o espírito e repetindo, em voz baixa, o que iria dizer e como tentaria apaziguar a divindade irritada, compreendendo que o caso era difícil e talvez fatal. Vênus recebeu-a com a ira estampada na fisionomia. — Tu, a mais ingrata e infiel das servas, lembraste, afinal que tens, realmente, uma senhora? — exclamou. — Ou talvez vieste para ver teu marido enfermo, ainda guardando o leito em conseqüência da ferida que lhe causou a amada esposa? És tão pouco favorecida e tão desagradável, que o único meio pelo qual podes merecer teu amante é a prova de indústria e diligência. Farei uma experiência de tua capacidade como dona de casa. Ordenou, então, a Psique que fosse ao celeiro de seu templo, onde havia grande quantidade de trigo, aveia, milhete, ervilhaças, feijões e lentilhas preparados para a alimentação dos pombos sagrados, e disse: — Separa todos estes cereais, colocando cada um de acordo com sua qualidade, e trata de fazer isso antes do anoitecer. Depois Vênus partiu, deixando a jovem. Psique, porém, quedou consternada, diante da imensidade do trabalho, estúpida e calada, sem mover um dedo.
Enquanto estava ali, desesperada, Cupido incitou a formiguinha, nativa dos campos, a ter pena dela. A chefe do formigueiro e toda a multidão de suas súditas de seis pernas aproximaram-se do montão de cereais e com a maior diligência, tomando grão por grão, separaram o montão, formando um monte de cada qualidade e, quando tudo terminou, desapareceram num momento. Ao aproximar-se do crepúsculo, Vênus voltou do banquete dos deuses, rescendendo a perfumes e coroada de rosas. Vendo a tarefa executada, exclamou: — Isto não é obra tua, desgraçada, mas daquele que conquistaste para seu infortúnio e para o teu. Assim dizendo, deu à jovem um pedaço de pão preto para a ceia e partiu. Na manhã seguinte, Vênus mandou chamar Psique e disse-lhe: — Olha para aquele bosque que se estende à margem do rio. Ali encontrarás carneiros pastando sem um pastor, cobertos de lã brilhante como ouro. Vai buscar-me uma amostra daquela lã preciosa colhida de cada um dos velocinos. Documente, Psique dirigiu-se à margem do rio, disposta a fazer o que estivesse ao seu alcance para executar a ordem. O rio deus, porém, inspirou aos juncos harmoniosos murmúrios, que pareciam dizer: — Oh! donzela duramente experimentada, não desafies a corrente perigosa, nem te aventures entre os formidáveis carneiros da outra margem, pois, enquanto eles estiverem sob a influência do sol nascente, são dominados por uma raiva cruel de destruir os mortais, com seus chifres aguçados ou seus rudes dentes. Quando, porém, o sol do meio-dia tiver levado o rebanho para a sombra e o espírito sereno do rio o tiver acalentado para descansar, podes atravessar entre ele sem perigo e encontrarás a lã de ouro nas moitas de arbustos e nos troncos das árvores. Assim o bondoso rio deus ensinou à Psique o que deveria fazer para executar sua tarefa e, seguindo suas instruções, ela em breve voltou para junto de Vênus, com os braços cheios de lã de ouro. Não foi, contudo, recebida com benevolência por sua implacável senhora, que disse: — Sei muito bem que não foi por teu próprio esforço que foste bem-sucedida nessa tarefa e ainda não estou convencida de que tenhas capacidade para executares sozinha uma tarefa útil. Toma esta caixa, vai às sombras infernais e entrega-a a Prosérpina, dizendo: "Minha senhora Vênus quer que lhe mandes um pouco de tua beleza, pois, tratando de seu filho enfermo, ela perdeu alguma da sua própria." Não demores a executar o encargo, pois preciso disso para aparecer na reunião dos deuses e deusas esta noite. Psique ficou certa de que sua perda era, agora, inevitável, obrigada a ir com seus próprios pés diretamente ao Érebo. Assim, para não adiar o inevitável, dirigiu-se ao alto de uma elevada torre, para de lá se precipitar, de maneira a tornar mais curta a descida para as sombras. Uma voz vinda da torre, disse-lhe, porém: — Por que, desventurada jovem, pretendes pôr fim aos teus dias de modo tão horrível? E que covardia faz desanimar diante deste último perigo quem tão milagrosamente venceu todos os outros? Em seguida, a voz lhe disse como, através de certa gruta, poderia alcançar o reino de Plutão e como evitar os perigos do caminho, passar por Cérbero, o cão de três cabeças, e convencer Caronte, o barqueiro, a transportá-la para a travessia do negro rio e trazê-la de volta. — Quando Prosérpina te der a caixa com sua beleza — acrescentou, porém, a voz — tem cuidado, acima de todas as coisas, para de modo algum abrires a caixa e não permitir que tua curiosidade olhe o tesouro de beleza das deusas. Animada por estas palavras, Psique seguiu todas as recomendações e chegou sã e salva ao reino de Plutão. Foi admitida no palácio de Prosérpina e sem aceitar o delicioso banquete que lhe foi oferecido, contentando-se com pão seco para alimentar-se, transmitiu o recado de Vênus. A caixa lhe foi devolvida sem demora, fechada e repleta de coisas preciosas. Psique voltou, então, pelo mesmo caminho e bem feliz se sentiu quando viu de novo a luz do dia. Depois, porém, de vencer tantos perigos, foi dominada por intenso desejo de examinar o conteúdo da caixa. — Como? — exclamou. — Eu, transportando a beleza divina, não aproveitarei uma parte mínima dela para pôr em minhas faces e parecer mais bela aos olhos de meu amado marido?
Assim dizendo, abriu cuidadosamente a caixa, mas nada ali encontrou de beleza e sim o infernal e verdadeiro sono estígio, que, libertando-se da prisão, tomou posse dela e fê-la cair no meio do caminho, como um cadáver sem senso de movimento. Cupido, porém, já restabelecido de seu ferimento, e já não suportando a ausência de sua amada Psique, passando pela greta da janela de seu quarto, que fora deixada aberta, voou até o lugar onde estava a jovem e retirando o sono de seu corpo, fechou-o de novo na caixa e acordou Psique, com o ligeiro contato de uma de suas setas. — Mais uma vez — exclamou — quase morreste, devido à mesma curiosidade. Mas agora executa exatamente a tarefa que lhe foi imposta por minha mãe, e cuidarei do resto. Então, Cupido, rápido como o relâmpago, penetrando através das alturas do céu, apresentou-se diante de Júpiter, com sua súplica. Júpiter ouviu-o com benevolência e advogou com tanto empenho a causa dos amantes que conseguiu a concordância de Vênus. Mandou, então, Mercúrio levar Psique à assembléia celestial, e, quando ela chegou, entregou-lhe uma taça de ambrosia, dizendo: — Bebe isto, Psique, e sê imortal. Cupido não romperá jamais o laço que atou, mas essas núpcias serão perpétuas. Assim, Psique ficou, finalmente, unida a Cupido e, mais tarde, tiveram uma filha, cujo nome foi Prazer. A lenda de Cupido e Psique é, geralmente, considerada alegórica. Psique em grego significa tanto borboleta como alma. Não há alegoria mais notável e bela da imortalidade da alma como a borboleta, que, depois de estender as asas, do túmulo em que se achava, depois de uma vida mesquinha e rastejante como lagarta, flutua na brisa do dia e torna-se um dos mais belos e delicados aspectos da primavera. Psique é, portanto, a alma humana, purificada pelos sofrimentos e infortúnios, e preparada, assim, para gozar a pura e verdadeira felicidade. Nas obras-de-arte, Psique é representada como uma donzela com asas de borboleta, juntamente com Cupido, nas diferentes situações descritas pela alegoria. Milton alude à história de Cupido e Psique, na conclusão do seu "Comus":

Seu filho, o deus Cupido, logo avança,
A linda amada, em transe, conduzindo,
Após tantos labores enfrentar,
Eis que, com a aprovação dos deuses todos,
Em sua esposa eterna há-de torná-la.
E, de tal himeneu, irão dois gêmeos,
Juventude e Alegria, venturosos,
Muito em breve nascer; jurou-o Jove.


A alegoria de Cupido e Psique é também apresentada nestes versos de T. K. Harvey:

Quanta lenda tão bela, outrora, nesse dia
Longínquo em que a razão tomava a fantasia
A asa multicor e, entre areias de ouro,
O rio carregava um líquido tesouro!
Quando a mulher sem par, beleza peregrina,
Que de sofrer e amar e lutar teve a sina,
A terra percorreu, exausta, noite e dia,
Em procura do Amor, que só no céu vivia!


A história de Cupido e Psique apareceu pela primeira vez nas obras de Apuleio, escritor do segundo século da nossa era. E, portanto, uma lenda muito mais recente que a maioria das outras da Idade da Fábula. E a isso que Keats faz alusão, em sua "Ode a Psique":

Ó mais bela visão! Ó derradeira imagem
Da estirpe celestial, da olímpica linhagem!
Mais bela que Diana livre de seu véu
E que Vésper erguida entre os astros do céu!
Que, no Olimpo, pudeste reluzir e ofuscar,
Embora sem um templo, embora sem altar!

A Mitologia Grega - Vertuno e Pomona.



As hamadríades eram ninfas dos bosques. Pomona era uma delas, e nenhuma a excedia no amor aos jardins e ao cultivo das árvores frutíferas. Não se preocupava com florestas e rios, mas amava as regiões cultivadas e as árvores de onde pendem as maças deliciosas. Trazia como arma, na mão direita, não um dardo, mas um podão. Armada com ele, dedicava seu tempo ora a impedir que as plantas crescessem excessivamente e a cortar os ramos que saíam de seus lugares, ora a abrir uma fenda para nela inserir um enxerto, fazendo o ramo adotar um broto que não era seu. Também velava para que suas plantas prediletas não ficassem secas e conduzia até junto dela os canais, a fim de que as raízes sedentas pudessem beber. Essa ocupação era seu objetivo e sua paixão: e estava livre do que Vênus inspira. Receava os habitantes da região e mantinha seu pomar fechado, sem permitir que homem algum ali entrasse. Os faunos e sátiros dariam tudo de que dispunham para possuí-la, e assim também o velho Silvano, que parece jovem para sua idade, e Pã, que usa uma guirlanda de folhas de pinheiro em torno da cabeça. Vertuno, porém, a ama mais do que todos os outros; mas não tem mais sorte do que os outros. Quantas vezes, sob o disfarce de um segador, ele não levou a Pomona trigo num cesto, em tudo semelhante, de fato, a um ceifeiro! Com uma faixa de feno amarrada em torno do corpo, parecia, realmente, que acabara de ceifar os campos. Algumas vezes, trazia consigo um aguilhão e ninguém duvidaria de que acabara de desatrelar os fatigados bois. Ora trazia um podão e personificava um vinhateiro; ora, carregando uma escada, dava a impressão de que ia colher maçãs. Às vezes apresentava-se como um soldado licenciado, às vezes carregava um caniço, como se fosse pescar. Desse modo, conseguia aproximar-se de Pomona freqüentemente e alimentava a paixão com a sua presença.

Certo dia, ele apareceu disfarçado em velha, com os cabelos grisalhos cobertos por uma touca e tendo um bastão na mão. Entrou no pomar e admirou os frutos. — Mereces louvor, minha filha — disse, e beijou Pomona, não exatamente como a beijaria uma velha. Sentou-se num banco e olhou para os ramos carregados de frutos que pendiam acima dela. Em frente, havia um olmo, por cujo tronco subia uma parreira, carregada de uva. Elogiou a árvore e a vinha a ela associada. — Mas — acrescentou — se a árvore ficasse só, sem a vinha lhe cingindo o tronco, nada teria para nos atrair ou nos oferecer, a não ser as folhas inúteis. E, igualmente, a vinha, se não se enroscasse em torno do olmo, estaria prostrada no chão. Por que não aproveitas a lição da árvore e da vinha e concordas em unir-te a alguém? Eu desejaria que assim o fizesses. A própria Helena não teve tantos pretendentes, nem Penélope, a esposa do astucioso Ulisses. Apesar de desprezá-los, eles te fazem a corte, divindades rurais e outros de diversas naturezas que andam por estas montanhas. Mas, se és prudente, e desejas fazer uma boa aliança, e deixares que te aconselhe uma velha que te ama mais do que supões, deixa de lado todos os outros e aceita Vertuno. E o meu conselho. Conheço-o tão bem quanto ele se conhece. Não é uma divindade errante, mas pertence a estas montanhas. Nem se assemelha a muitos dos amantes de hoje em dia, que amam todas que têm ocasião de ver. Ele te ama, e somente a ti. Ajunta a isso que ele é jovem e belo e tem a arte de assumir qualquer aspecto que deseje, e pode transformar-se exatamente naquilo que desejes. Além do mais, ele ama as mesmas coisas que amas, deleita-se com a jardinagem e admira tuas maçãs. Agora, porém, ele não se interessa por frutas e flores, nem outra coisa qualquer, a não ser por ti. Tem piedade dele e imagina-o falando agora por minha boca. Lembra-te de que os deuses castigam a crueldade e de que Vênus detesta os corações duros e vingar-se-á de tais ofensas, mais cedo ou mais tarde. Para provar isto, deixa-me contar-te uma história que é bem sabido em Chipre ser verdadeira. E espero que ela tenha como resultado tornar-te mais benevolente. "Ífis era um jovem de origem humilde, que se apaixonou por Anaxárete, nobre dama de uma antiga família de Têucria. Lutou muito tempo com sua paixão, mas, quando viu que não podia dominá-la, procurou a casa da mulher amada, como suplicante. Primeiro contou sua paixão à ama de Anaxárete e pediu-lhe que, se amasse a filha de criação, favorecesse sua causa. Depois, tentou arrastar os criados para o seu lado. As vezes, escrevia suas súplicas em tabuinhas e, muitas vezes, pendurou, na porta, guirlandas que molhara com suas lágrimas. Estendia-se nos umbrais da morada da jovem e murmurava suas queixas às barras e fechaduras cruéis que dela o separavam. Anaxárete mostrava-se mais surda que os vagalhões que se erguem nas tempestades de novembro; mais dura que o aço que vem das forjas germânicas ou que a pedra que ainda se prende ao seu rochedo nativo. Zombava e ria-se de Ifis, ajuntando palavras cruéis ao seu rude tratamento, e não lhe dava a mais ligeira esperança. Ífis já não podia suportar os tormentos do amor desesperançado e, de pé diante da porta da amada, disse estas últimas palavras: — Venceste, Anaxárete, e já não terás de suportar minhas importunações. Goza o teu triunfo! Canta canções de alegria e cinge tua cabeça de louros. Venceste. Vou morrer. Coração de pedra, regozija-te! Isto ao menos posso oferecer-te e obrigar-te a elogiar-me. E assim provarei que o meu amor por ti só me abandonará juntamente com a vida. Nem deixarei ao cuidado de outros a notícia de minha morte. Irei eu mesmo e me verás morrer e hás de regalar teus olhos com o espetáculo. Contudo, ó deuses que baixais os olhos para os sofrimentos dos mortais, observai meu destino! Só peço uma coisa: que eu seja lembrado nos tempos vindouros e que ajunteis à minha fama os anos que roubastes de minha vida. Assim ele disse e, voltando o rosto pálido e os olhos lacrimosos para a mansão da amada, amarrou uma corda ao portal onde muitas vezes prendera guirlandas e, metendo a cabeça no laço, murmurou: — Pelo menos esta guirlanda há de agradar-te, jovem cruel! E caiu enforcado, suspenso à corda pelo pescoço quebrado. Ao cair, chocou-se contra a porta, e o ruído foi semelhante a um gemido. Os criados abriram a porta, encontraram-no morto, e, com exclamações de piedade, retiraram o corpo e levaram-no para casa, entregando-o à sua mãe, pois seu pai já era morto. Ela recebeu o corpo sem vida do filho, apertou-o de encontro ao peito e disse as palavras dolorosas que as mães costumam dizer no sofrimento. O triste funeral atravessou a cidade e o pálido cadáver foi levado num caixão para o lugar da pira funerária. Por acaso, a casa da Anaxárete ficava na rua onde passava o desfile, e os lamentos das carpideiras chegaram aos ouvidos daquela a quem a divindade vingadora já marcara para o castigo. — Vamos ver este triste desfile — disse ela, e subiu a uma torre através de cuja janela aberta contemplou o funeral. Mal demoraram no vulto de Ífis estendido no caixão, seus olhos começaram a enrijecer e esfriou o quente sangue de seu corpo. Procurando recuar, a jovem percebeu que não podia mover os pés. Tentou virar o rosto, mas em vão. Pouco a pouco, todos os seus membros tornaram-se de pedra, como o coração. Não podes duvidar do fato, pois a estátua ainda se encontra no templo de Vênus em Salamina, ostentando a forma exata da dama. E, agora, reflete sobre todas essas coisas, minha querida, e põe de lado o desdém e as protelações e aceita um amante. Assim não possa o granizo hibernai crestar teus jovens frutos, nem os ventos furiosos dispersar tuas flores!" Tendo assim falado, Vertuno livrou-se do disfarce da velha e se mostrou tal como era, um belo jovem. Pomona teve a impressão de ver o sol irrompendo através de uma nuvem. Ele ia renovar seus apelos, mas não houve necessidade; seus argumentos e seu próprio aspecto triunfaram e a ninfa já não mais resistiu, correspondendo-lhe com o mesmo ardor.

A Mitologia Grega - Ceix e Alcíone: As Alcíones

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Ceix era rei da Tessália, onde reinava em paz, sem cometer violência ou injustiça. Era filho de Vésper, a Estrela-d'Alva, e o esplendor de sua beleza lembrava a do pai. Alcíone, filha de Éolo, era sua esposa, amante e dedicada. Ora, Ceix sentia-se profundamente aflito pela morte do irmão, e os horríveis prodígios que se seguiram a essa morte davam-lhe a impressão de que os deuses lhe eram hostis. Resolveu, portanto, fazer uma viagem a Carlos, na Jônia, a fim de consultar o oráculo de Apolo. Porém, logo que revelou sua intenção à esposa, Alcíone, esta estremeceu e tornou-se mortalmente pálida. — Que culpa minha, querido marido, afastou de mim o teu afeto? — perguntou ela. — Onde está aquele amor que dominava todos os nossos pensamentos? Aprendeste a te sentires bem, longe de Alcíone? Preferias que eu me afastasse de ti? Também tentou desanimá-lo, descrevendo a violência dos ventos, que conhecera muito bem, quando vivia em casa de seu pai, pois Éolo é o rei dos ventos, e fez todo o possível para dissuadi-lo. — Eles correm juntos — disse — com tanta fúria que o fogo irrompe do conflito. Mas se vais, querido marido, deixa-me ir contigo, de outro modo sofrerei não apenas os males verdadeiros que encontrares como também aqueles que meu temor sugerir.

Estas palavras afetaram profundamente o espírito do Rei Ceix, que não desejava menos que a esposa, levá-la consigo, mas não podia expô-la aos perigos do mar. Respondeu, portanto, consolando-a como podia, e terminou com estas palavras: — Prometo pelos raios de meu pai, a Estrela-d'Alva, que, se o destino permitir, voltarei antes de a Lua ter girado duas vezes sobre sua órbita. Tendo assim falado, ordenou que o navio fosse tirado do estaleiro e os remos e velas colocados a bordo. Ao ver esses preparativos, Alcíone tremeu, como se tivesse pressentimento do mal. Com lágrimas e soluços, disse adeus ao marido e caiu sem sentidos no solo. Ceix, por seu gosto, teria retardado a partida, mas os jovens marinheiros tinham tomado os remos e avançavam vigorosamente entre as ondas, com pancadas longas e cadenciadas. Alcíone ergueu os olhos lacrimosos e viu o marido de pé no convés, acenando-lhe. Respondeu ao aceno, até que o navio se afastou tanto que ela já não podia distinguir o vulto de Ceix dos demais. Quando o próprio navio já não pôde ser visto, a jovem rainha aplicou os olhos para avistar as velas num último relance até que estas também desapareceram. Retirou-se, então, para o seu quarto e lançou-se ao leito solitário. Enquanto isso, os navegantes saíam do porto e a brisa brincava no cordame. Os marinheiros manejavam os remos e alçaram as velas. Quando mais ou menos metade do trajeto fora feito, o mar começou a embranquecer com ondas e o vento leste a soprar como um furacão. O mestre ordenou que se recolhessem as velas, mas a tempestade impediu que a ordem fosse cumprida, pois os gritos de comando não eram ouvidos entre o ruído dos ventos e das ondas. Os marinheiros, espontaneamente, tratavam de recolher os remos e rizar as velas. Enquanto assim fazem o que a cada um parece o melhor, a tempestade aumenta. Os gritos dos homens, o rangido das enxárcias e o batido das vagas misturam-se com o estrondo do trovão. O mar furioso parece levantar-se até o céu, para espalhar entre as nuvens sua espuma, depois, baixando até o fundo, tomar a cor do carvão: um negrume do Estige. O navio acompanha todas essas mudanças. Parece um animal selvagem que corre sob as lanças dos caçadores. A chuva cai em torrentes, como se o céu estivesse caindo para se unir com o mar. Quando os raios cessam, por um momento, a noite parece ajuntar sua própria escuridão à da tempestade; em seguida vem o relâmpago, afastando as trevas e tudo iluminando com seu clarão. A habilidade falha, a coragem desaparece e a morte parece vir em cada vaga. Os homens ficam estupidificados de terror. Vêm-lhes à lembrança os pais e filhos, os parentes deixados em casa. Ceix pensa em Alcíone. Apenas o seu nome está em seus lábios e, ao mesmo tempo que anseia por vê-la, regozija-se com a sua ausência. De súbito, o mastro é despedaçado por um raio, o leme se quebra e a onda triunfante varre o tombadilho e sai em seguida, levando os destroços. Alguns dos marinheiros, petrificados pelo choque, afundam-se na água e não mais se erguem; outros agarram-se aos restos do naufrágio. Ceix, com a mão que costumava segurar o cetro, agarra-se a uma tábua, gritando por socorro — em vão, por desgraça — ao seu pai e ao seu sogro. O nome de Alcíone, porém, era o que mais vezes vinha aos seus lábios. Para ela voltam-se os seus pensamentos. Pede que as ondas possam levar seu corpo até Alcíone e que seus funerais por ela sejam feitos. Finalmente, as águas o cobriram e ele se afunda. A Estrela-dAlva mostrou-se sombria naquela noite. Como não podia deixar o céu, escondeu nas nuvens a face. Enquanto isso, Alcíone, ignorando todos esses horrores, conta os dias para o prometido regresso do marido. Ora prepara as vestes que ele envergará, ora as que ela própria usará quando ele regressar. Oferece, freqüentemente, incenso a todos os deuses, porém mais do que todos a Juno. Reza, incessantemente, pelo marido que já não vive: que ele esteja salvo; que regresse ao lar; que não veja, em sua ausência, outra mulher que possa amar mais que a ela própria. De todas essas súplicas, porém, a última era a única destinada a ser atendida. A deusa, afinal, não mais suportando ouvir preces por alguém que era morto e ver estendidos em seus altares os braços que deveriam erguer-se nos ritos funerários, chamou íris, ordenando: — íris, minha fiel mensageira, vai à casa letárgica do Sono e dize-lhe para enviar uma visão a Alcíone, sob a forma de Ceix, a fim de que ela saiba o que aconteceu. Íris envergou suas vestes de muitas cores e tingindo o espaço com seu arco, procurou o palácio do Rei do Sono. Perto da região cimeriana, numa caverna da montanha, fica a morada daquele deus sonolento. Ali Febo não ousa entrar, nem ao se levantar, nem ao meio-dia, nem quando se recolhe. Nuvens e sombras erguem-se do chão e a luz brilha fracamente. A ave da alvorada, de vermelha crista, jamais ali chama, em voz alta, Aurora, nem o vigilante cão ou o solerte ganso perturbam o silêncio. Nem animal selvagem, nem o gado, nem um ramo movido pelo vento, nem o ruído da conversa humana afetam a quietude. O silêncio ali reina; do fundo do rochedo, contudo, corre o Rio Letes, e seu murmúrio convida ao sono. Junto à entrada da caverna, crescem abundantemente papoulas e outras plantas, de cujo suco a Noite extrai o sono, que espalha sobre a terra escurecida. Não há na mansão porta que gema nos gonzos, nem qualquer vigia; mas, no centro, um leito de negro ébano, adornado com plumas e cortinas negras. Ali o deus se recosta, com os membros relaxados pelo sono. Em torno dele, estão os sonhos, apresentando todos várias formas, tantas quantas hastes têm os trigais, quantas folhas tem a floresta, ou quantos grãos de areia têm as praias. Logo que a deusa entrou e afastou os sonhos que se reuniam em torno dela, seu clarão iluminou a caverna. O deus, mal abrindo os olhos, e de vez em quando cabeceando e fazendo cair a comprida barba sobre o peito, afinal despertou e estendendo o braço indagou a que vinha íris, pois a conhecia. — Sono — disse ela —, tu o mais gentil dos deuses, que tranqüilizas os espíritos e curas os corações amargurados, Juno ordena-te que envies um sonho a Alcíone, na cidade de Traquine, representando seu finado marido e todos os acontecimentos do naufrágio. Tendo transmitido o recado, Íris apressou-se em sair, pois não podia tolerar o ar estagnado, e, sentindo a sonolência que a tomava, voltou, através de seu arco, ao caminho que trilhara antes. Então, Sono chamou um de seus inúmeros filhos, Morfeu, o mais hábil em simular formas e em imitar o andar, a fisionomia e a maneira de falar, mesmo os vestuários e os modos mais característicos de cada um. Ele, porém, apenas imitava os homens, deixando ao encargo de outro imitar aves, quadrúpedes e serpentes. Este era chamado Icelo; e um terceiro, Fantasos, muda-se em rochedos, águas, bosques e outras coisas sem vida. Os dois servem a reis e grandes personagens, em suas horas de sono, ao passo que outros se movem entre a gente comum. De todos os irmãos, Sono escolheu Morfeu para executar a ordem de Íris. Depois, encostou a cabeça no travesseiro e entregou-se ao grato repouso. Morfeu voou, sem fazer o menor ruído com as asas, e logo chegou à cidade hemoniana, onde, deixando de lado as asas, assumiu a forma de Ceix. Sob esse aspecto, mas pálido como um defunto, e nu, colocou-se em frente ao leito da desventurada esposa. Sua barba parecia encharcada e a água lhe escorria pelos cabelos. Debruçando-se sobre o leito, com lágrimas descendo dos olhos, disse: — Reconheces Ceix, desventurada esposa, ou a morte modificou em demasia as minhas feições? Olha-me, vê-me, a sombra de teu marido, e não ele próprio. Tuas preces, Alcíone, de nada me valeram. Estou morto. Não te iludas mais com vãs esperanças de meu regresso. Os ventos tempestuosos afundaram meu navio no Mar Egeu, a água penetrou em minha boca enquanto eu dizia, em voz alta, o teu nome. Não é um mensageiro incerto que te conta isto, não é um vago rumor que chega aos teus ouvidos. Venho em pessoa, eu um náufrago, contar-te meu destino. Levanta-te! Dá-me lágrimas, dá-me lamentos, não me deixes descer ao Tártaro sem ser chorado. A estas palavras Morfeu ajuntou a voz que parecia ser a do marido de Alcíone; vertia lágrimas iguais às de verdade, e suas mãos copiavam os gestos de Ceix. Alcíone, chorando, gemeu e estendeu os braços, ainda dormindo, procurando abraçar o corpo, mas encontrando apenas o ar. — Fica! — exclamou. Por que foges? Partamos os dois juntos! Sua própria voz despertou-a. Assustada, olhou em torno, para ver se o marido ainda estava presente, pois os criados, alarmados por seus gritos, haviam acorrido, trazendo uma luz. Não encontrando o marido, Alcíone esmurrou o peito e rasgou as vestes. Não se preocupou em desatar os cabelos, mas arrancou-os, selvagemente. Sua ama indaga qual a causa de seu sofrimento. — Alcíone já não existe — responde. — Pereceu com seu Ceix. Não digas palavras de consolo, ele naufragou e está morto. Eu o vi, reconheci-o. Estendi os braços para retê-lo. Sua sombra esvaneceu-se, mas era a verdadeira sombra de meu marido. Não com as feições costumeiras, não com sua beleza, mas pálido, nu e os cabelos molhados pela água do mar, para fazer-me sofrer. Aqui, neste mesmo lugar, esteve a triste visão. — E Alcíone olhou, procurando suas pegadas. — Era isto, era isto que meu espírito previa, quando lhe implorei que não me deixasse, que não se confiasse às águas. Oh, quanto desejaria, uma vez que foste, que me tivesses levado contigo! Quanto melhor teria sido! Não teria, então, um resto de vida para passar sem ti, nem de morrer uma morte separada. Se eu pudesse suportar a vida e lutar para tolerá-la, seria mais cruel para comigo mesma do que o mar tem sido. Mas não lutarei, não me separarei de ti, desventurado marido. Desta vez, pelo menos, far-te-ei companhia. Na morte, se um só túmulo não pode conter-nos, um só epitáfio conterá; se não posso misturar minhas cinzas com as tuas, meu nome, pelo menos, não será separado do teu. O sofrimento impediu-a de dizer outras palavras, e as que dizia foram interrompidas por lágrimas e soluços. Já era manhã. Alcíone dirigiu-se à praia e procurou o lugar onde vira o marido pela última vez, por ocasião de sua partida. — Enquanto ajustava os apetrechos do navio, ele me deu aqui o último beijo. Revendo cada objeto, ela se esforça para relembrar todos os incidentes, contemplando o mar, e avista, então, um objeto indistinto, flutuando na água. A princípio, duvidou do que fosse, mas, pouco a pouco, as águas o foram trazendo mais para perto, e não havia dúvida de que era o corpo de um homem. Embora sem saber de quem se tratava, como era o corpo de um náufrago, Alcíone ficou profundamente comovida e derramou lágrimas copiosas, exclamando: — Ah, desventurado e desventurada esposa, se tens esposa! Empurrado pelas águas, o corpo aproximou-se. E, ao vê-lo aproximar-se, Alcíone tremia cada vez mais. Agora, aproxima-se mais da praia. Aparecem, agora, sinais que ela reconhece. E o marido... Estendendo para o corpo os trêmulos braços, ela exclama: — Oh, adorado marido, é assim que voltas para junto de mim? Partindo da praia, fora construído um molhe, destinado a conter a fúria do mar. Alcíone salta sobre esta barreira e (coisa maravilhosa que o pudesse fazer) voa e, cortando o ar com asas que haviam surgido naquele instante, aflorou a superfície da água, transformada numa ave desventurada. Enquanto voava, saíam-lhe da garganta sons dolorosos, semelhantes à voz de alguém que se lamenta. Ao tocar o corpo mudo e sem sangue com as asas recém-formadas, tentou beijá-lo, com seu bico ósseo. Se Ceix sentira o contato, ou se foi simplesmente ação das ondas, aqueles que contemplavam a cena não souberam dizer, mas o cadáver pareceu levantar a cabeça. Na verdade, porém, ele sentiu e, pela benevolência dos deuses ambos os esposos foram transformados em aves. Acasalaram-se e reproduziram-se. Durante sete plácidos dias, no inverno, Alcíone choca os ovos no ninho, que flutua no mar. Então, as rotas são seguras para os marinheiros. Éolo impede que os ventos sacudam as profundezas das águas. O mar fica entregue, durante esse tempo, aos seus netos. Os seguintes versos do poema "A Noiva de Abidos", de Byron, poderiam parecer emprestados à parte final desta descrição, se não se esclarecesse que o autor se inspirou na observação do movimento de um cadáver flutuando nas águas:

No leito movediço sacudida,
Pende, ao sabor da vaga, a nívea face
E move-se, na vaga, a mão sem vida
Qual se de tanta dor e tantas mágoas
Com um gesto de ameaça se vingasse,
Mas logo rosto e mãos somem nas águas.


Milton, em seu "Hino à Natividade", assim alude à lenda Alcíone:

Bem tranqüila era a noite em que o Príncipe
Da luz sobre esta terra começou
Seu reinado de paz. Serena, a brisa
De leve o mar beijava. O oceano
Mal se movia. E as aves da bonança
Em seu ninho vagavam sobre as ondas.


Também Keats diz, no "Endimião":

Maravilhoso sono! Benfazeja
Ave que, no turbado mar da alma,
Seu ninho faz, até que o mar esteja
Tranqüilo e manso, e a natureza calma

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A Mitologia Grega - Apolo e Jacinto.



Apolo amava apaixonadamente um jovem chamado Jacinto. Acompanhava-o em suas diversões, levava a rede quando ele pescava, conduzia os cães quando ele caçava, seguia-o em suas excursões pelas montanhas e esquecia, por sua causa, a lira e as setas. Certo dia, os dois divertiram-se com um jogo e Apolo, impulsionando o disco, com força e agilidade, lançou-o muito alto no ar. Jacinto contemplou o disco e, excitado com o jogo, correu a apanhá-lo, ansioso por fazer a sua jogada, mas o disco saltou na terra e atingiu-o na testa. O jovem caiu desmaiado. O deus, pálido como Jacinto, ergueu-o e tratou de aplicar toda a sua arte, para estancar o sangue e conservar a vida que se esvanecia, mas tudo em vão: o ferimento estava além dos poderes da medicina. Como um lírio cuja haste quebrou-se num jardim, curva-se e volta para a terra suas flores, assim a cabeça do jovem moribundo, como se tivesse se tornado muito pesada para o pescoço, pendeu sobre o ombro. — Morreste, Jacinto — exclamou Apolo —, roubado por mim de tua juventude. O sofrimento é teu, e meu o crime. Pudesse eu morrer por ti! Como, porém, isto é impossível, viverás comigo, na memória e no canto. Minha lira há de celebrar-te, meu canto contará teu destino e tu te trans-formarás numa flor gravada com minha saudade. Enquanto Apolo falava, o sangue que escorrera para o chão e manchara a erva, deixou de ser sangue; uma flor de colorido mais belo que a púrpura tíria nasceu, semelhante ao lírio, com a diferença de que é roxo, ao passo que o lírio é de uma brancura argêntea.2 E isso não foi bastante para Febo. Para conferir ainda maior honra, deixou seu pesar marcado nas pétalas, e nelas escreveu "Ai! Ai!", como até hoje se vê. A flor tem o nome de jacinto e sempre que a primavera volta, revive a memória do jovem e lembra o seu destino. Conta-se que Zéfiro (o vento oeste), que também amava Jacinto e tinha ciúme da preferência de Apolo, desviou o disco de seu rumo para fazê-lo atingir o jovem.

Keats faz alusão a isso no "Endimião", quando descreve os espectadores do jogo de argolas:

Contemplam os jogadores dos dois lados
Lembrando, ao mesmo tempo,
A sorte de Jacinto, quando o sopro,
De Zéfiro o matou;
De Zéfiro que, agora, penitente,
Quando Febo se eleva
No céu, as pétalas da florzinha beija.


Também no "Lycidas" de Milton há uma alusão ao jacinto:

A roxa flor que traz a dor impressa.

A Mitologia Grega - Vênus e Adônis.



Brincando, certo dia, com seu filho Cupido, Vênus feriu o peito em uma de suas setas. Afastou a criança, mas a ferida era mais profunda do que pensara. Antes de curá-la, Vênus viu Adônis, e apaixonou-se por ele. Já não se interessava por seus lugares favoritos: Pafos, Cnidos e Amatos, ricos em metais. Afastava-se mesmo do céu, pois Adônis lhe era mais caro. Seguiu-o, fez-lhe companhia. Ela, que gostava de se reclinar à sombra, sem outras preocupações a não ser a de cultivar seus encantos, anda pelos bosques e pelos montes, vestida como a caçadora Diana; chama seus cães e caça lebres e cervos, ou outros animais fáceis de caçar, abstendo-se, porém, de perseguir os lobos e os ursos, rescendendo ao sangue dos rebanhos. Também recomenda a Adônis que tenha cuidado com tão perigosos animais: — Sê bravo com os tímidos. A coragem contra os corajosos não é segura. Evita expor-te ao perigo e ameaçar minha felicidade. Não ataques os animais que a natureza armou. Não aprecio tua glória ao ponto de consentir que a conquistes expondo-te assim. Tua juventude e a beleza que encanta Vênus não enternecerão os corações dos leões e dos rudes javalis. Pensa em suas terríveis garras e em sua força prodigiosa! Odeio toda a raça deles. Queres saber por quê? E, então, contou a história de Atalanta e Hipómenes, que ela transformara em leões, para castigo da ingratidão que lhe fizeram. Tendo feito essa advertência, Vênus subiu ao seu carro, puxado por cisnes, e partiu, através dos ares. Adônis, porém, era demasiadamente altivo para seguir tais conselhos. Os cães haviam expulsado um javali de seu covil e o jovem lançou seu dardo, ferindo o animal de lado. A fera arrrancou o dardo com os dentes e investiu contra Adônis, que virou as costas e correu; o javali, porém, alcançou-o, cravou-lhe os dentes no flanco e deixou-o moribundo na planície. Vênus, em seu carro puxado por cisnes, ainda não chegara a Chipre, quando ouviu, cortando o ar, os gemidos de seu amado, e fez voltar para a terra os corcéis de brancas asas. Quando se aproximou e viu, do alto, o corpo sem vida de Adônis, coberto de sangue, desceu e, curvando-se sobre ele, esmurrou o peito e arrancou os cabelos. Acusando as Parcas, exclamou: — Sua ação, porém, constituiu um triunfo parcial. A memória de meu sofrimento perdurará, e o espetáculo de tua morte e de tuas lamentações, meu Adônis, será anualmente renovado. Teu sangue será mudado numa flor; este consolo ninguém pode negar-me. Assim falando, espalhou néctar sobre o sangue e, ao se misturarem os dois líquidos, levantaram-se bolhas, como numa lagoa quando cai a chuva, e, no espaço de uma hora, nasceu uma flor cor-de-sangue, como a da romã. Uma flor de vida curta, porém. Dizem que o vento lhe abre os botões e depois arranca e dispersa as pétalas; assim, é chamada de anêmona, ou flor-do-vento, pois o vento é a causa tanto de seu nascimento como de sua morte.

Milton faz alusão ao episódio de Vênus e Adônis, em "Comus"

Entre moitas de rosas e jacintos,
Muitas vezes repousa o jovem
Adônis Amortecida a dor, e a seu lado
Jaz a triste rainha dos assírios...

A Mitologia Grega - Dríope.

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Dríope e Iole eram irmãs. A primeira era esposa de Andrêmon, amada pelo marido e feliz com o nascimento do primeiro filho. Certo dia, as irmãs caminhavam pela margem de um rio que descia suavemente até junto da água, ao passo que a parte mais alta era recoberta de mirtos. As duas tencionavam colher flores, a fim de tecerem guirlandas para os altares das ninfas, e Dríope trazia a criança no regaço, e amamentava-a, enquanto caminhavam. Perto da água, crescia um lótus, repleto de flores cor de púrpura. Dríope colheu algumas e ofereceu-as à criancinha, e Iole ia fazer o mesmo, quando percebeu sangue escorrendo nas hastes de onde sua irmã colhera as flores. A planta não era outra senão a ninfa Lótis, que, fugindo de um vil perseguidor, fora metamorfoseada em planta. Foi o que as duas irmãs ficaram sabendo pelos habitantes da região, quando já era demasiadamente tarde. Horrorizada, quando percebeu o que havia feito, Dríope teria com prazer fugido do lugar, mas sentiu os pés enraizados ao solo. Tentou arrancá-los, mas só pôde mover os membros superiores. Aos poucos, a dureza da madeira foi subindo pelo seu corpo e ela, angustiada, tentou arrancar os cabelos, mas viu as mãos cheias de folhas. A criança sentiu que o seio materno começara a enrijecer-se e o leite cessava de correr. Iole contemplou o triste destino da irmã, sem poder socorrê-la. Abraçou-se com o tronco que crescia, como se pudesse impedir a continuação da metamorfose, e teria de bom grado sido envolvida pelo duro córtex. Neste momento, surgiram o pai de Dríope e seu marido, Andrêmon, e, quando perguntaram por Dríope, Iole apontou-lhes o lótus recém-formado. Abraçaram-se com o tronco, ainda quente, e cobriram suas folhas de beijos. Nada mais restava de Dríope, a não ser o rosto. As lágrimas continuavam a escorrer-lhe dos olhos, caindo sobre as folhas, e, enquanto podia, ela falou: — Não sou culpada. Não mereço este destino. Não injuriei pessoa alguma. Se eu disse falsidades, possa minha folhagem perecer com a seca e meu tronco ser cortado e queimado. Tomai este menino e entregai-o a uma ama. Tragam-no sempre para ser nutrido sob meus ramos e brincar à minha sombra. E quando ele tiver crescido bastante para falar, ensinai-o a chamar-me de mãe e dizer, com tristeza: "Minha mãe está sob este córtex." Que ele seja cauteloso ao andar pelas margens dos rios e colher flores, lembrando-se de que cada moita de arbustos que vê pode ser uma deusa disfarçada. Adeus, querido esposo, irmã e pai. Se ainda me tendes amor, não deixeis que o machado me fira, nem que os rebanhos mordam e dilacerem meus galhos. Como não posso aproximar-me de vós, subi e beijai-me; e, enquanto meus lábios continuarem a sentir, erguei meu filho, para que eu possa beijá-lo. Não posso mais falar, pois o córtex avança até o pescoço e em breve atingirá meu rosto. Não precisais fechar-me os olhos, o córtex os fechará sem vossa ajuda. Então os lábios cessaram de mover-se, e a vida extinguiu-se; mas os ramos conservaram durante algum tempo mais o calor vital.

A Mitologia Grega - Pigmalião.



Pigmalião via tantos defeitos nas mulheres que acabou por abominá-las, e resolveu viver solteiro. Era escultor e executou, com maravilhosa arte, uma estátua de marfim, tão bela que nenhuma mulher de verdade com ela poderia comparar-se. Era, na verdade, de uma perfeita semelhança com uma jovem que estivesse viva e somente o recato impedisse de mover-se. A arte, por sua própria perfeição, ocultava-se, e a obra parecia produzida pela própria natureza. Pigmalião admirou sua obra e acabou apaixonando-se pela criação artificial. Muitas vezes, apalpava-a, como para se assegurar se era viva ou não, e não podia mesmo acreditar que se tratasse apenas de marfim. Acariciava-a e dava-lhe presentes como as jovens gostam: conchas brilhantes e pedras polidas, pássaros e flores de diversas espécies, contas de âmbar. Colocou vestidos sobre seu corpo, anéis em seus dedos e um colar no pescoço, brincos nas orelhas e cordões de pérolas no peito. Vestiu-a e ela não pareceu menos encantadora do que nua. Deitou-a num leito recoberto de panos coloridos com púrpura, chamou-a de esposa e colocou-lhe a cabeça num travesseiro de plumas macias, como se ela pudesse sentir a maciez. Estava próximo o festival de Vênus, celebrado com grande pompa em Chipre. Vítimas eram oferecidas, os altares fumegavam e o cheiro de incenso enchia o ar. Depois de ter executado sua parte nas solenidades, Pigmalião de pé, diante do altar, disse, timidamente: — Deuses, vós que tudo podeis, dai-me por esposa... — não se atreveu a dizer "minha virgem de marfim", mas acrescentou: ... alguém semelhante à minha virgem de marfim. Vênus, que estava presente ao festival, ouviu-o e compreendeu o pensamento que ele não se atrevera a formular, e, como augúrio de sua benevolência, fez a chama do altar erguer-se três vezes no ar. Ao voltar para casa, Pigmalião foi ver a estátua e, debruçando-se sobre o leito, beijou-a na boca. Os lábios pareceram-lhe quentes. Beijou-a de novo e abraçou-a; o marfim mostrava-se macio sob seus dedos, como a cera do Himeto. Atônito e alegre, embora duvidando, e receando que se tivesse enganado, de novo, muitas vezes, com o ardor de um amante, toca o objeto de suas esperanças. Estava realmente vivo! O corpo, quando apertado, cedia aos dedos, para recuperar, depois, a elasticidade. Afinal, o cultuador de Vênus encontrou palavras para agradecer à deusa e apertou os lábios de encontro a lábios tão reais como os seus próprios. A virgem sentiu os beijos e corou, e abrindo seus tímidos olhos à luz fixou-os, no mesmo momento, em seu amante. Vênus abençoou as núpcias que propiciara, e dessa união nasceu Pafos, de quem a cidade, consagrada a Vênus, recebeu o nome.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

A Mitologia Grega - Glauco e Sila.

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Glauco era pescador. Certo dia, recolhendo as redes, verificou que apanhara muitos peixes, de várias espécies. Esvaziou a rede e tratou de separar os peixes, na relva. O lugar em que se encontrava era uma bela ilha fluvial, desabitada e não usada mesmo para pastagem do gado, que jamais fora visitada por quem quer que fosse, a não ser pelo próprio Glauco. De súbito, os peixes que se encontravam na relva começaram a reviver e mover as barbatanas, como se estivessem na água. E, enquanto o pescador contemplava o espetáculo, atônito, todos os peixes moveram-se a um só tempo para a água, nela mergulharam e se afastaram. Glauco ficou sem saber se fora algum deus que fizera aquilo, ou se havia algum poder secreto na erva. — Que erva tem tal poder? — exclamou. E, apanhando algumas folhas, provou-as. Mal o suco da planta atingiu-lhe o palato, ele se sentiu agitado por um violento desejo de penetrar na água. Não pôde resistir por muito tempo e, dizendo adeus à terra, mergulhou na corrente. Os deuses da água o receberam com benevolência e acolheram-no em sua sociedade. Obtiveram, ainda, o consentimento de Oceano e Tétis, os soberanos do mar, para que fosse lavado de tudo o que ainda lhe restava de mortal. Cem rios despejaram suas águas sobre ele. Glauco perdeu, então, toda a sensação de sua antiga natureza e toda a consciência. Quando voltou a si, estava mudado em forma e em espírito. Os cabelos tornaram-se verdes como o mar e arrastavam-se atrás dele na água; os ombros alargaram-se e as pernas assumiram a forma de uma cauda de peixe. Os deuses do mar cumprimentaram-no pela mudança de seu aspecto e ele se imaginou um personagem de bela aparência. Um dia, Glauco viu a linda donzela Sila, favorita das ninfas da água, caminhando ao longo da praia à procura de um ponto tranqüilo, onde pudesse entrar no mar, como entrou. Ele se apaixonou pela jovem e, surgindo à superfície das águas, falou-lhe, dizendo-lhe as palavras que lhe pareceram as mais convenientes para fazê-la ficar onde estava; ela, logo ao vê-lo, pôs-se a correr, até chegar a um rochedo que dominava o mar. Ali parou, para ver se tratava de um deus ou animal marinho, e observou com assombro a forma e a cor de Glauco. Este, emergindo em parte da água e apoiando-se num rochedo, disse: — Donzela, não sou um monstro, não sou um animal marinho, mas um deus. E nem Tritão nem Proteu estão colocados mais alto do que estou. Outrora fui mortal e ganhava minha vida no mar. Agora, porém, a ele pertenço inteiramente. Contou, então, a história de sua metamorfose, e como fora elevado à sua atual dignidade, e acrescentou:

— De que vale, porém, tudo isso, se não consigo mover teu coração? Continuava a falar no mesmo tom, mas Sila virou as costas e fugiu. Glauco, desesperado a princípio, teve, depois, a idéia de consultar a feiticeira Circe. E, assim, dirigiu-se à sua ilha, à mesma onde mais tarde Ulisses desembarcou, como veremos em outro episódio. Depois das saudações recíprocas, disse Glauco: — Deusa, imploro tua piedade. Somente tu podes aliviar meu sofrimento. Conheço o poder das ervas melhor que ninguém, pois a elas devo minha mudança de forma. Amo Sila. Envergonho-me de contar-te como a cortejei e lhe fiz promessas, e quão desdenhosamente ela me tratou. Peço-te que uses de teus encantamentos, ou ervas poderosas, se têm mais valor, não para curar-me do meu amor, pois não desejo tal coisa, e sim para fazer com que Sila o compartilhe e me retribua. Ao que Circe replicou, pois não era insensível à atração da verde divindade marinha: — Seria melhor que procurasses um objeto complacente ao teu amor. És digno de ser procurado, em vez de procurar em vão. Não sejas tímido, conheces teu próprio valor. Afirmo-te que mesmo eu, deusa como sou, e conhecedora das virtudes das plantas e encantamentos, não saberia como resistir-te. Se ela te despreza, despreza-a também. Procura alguém que te encontre a meio caminho e assim possam ambos ser satisfeitos a um só tempo. A estas palavras, Glauco retrucou: — Mais cedo crescerão árvores no fundo do oceano e algas no alto das montanhas, do que deixarei de amar Sila, e somente ela. A deusa ficou indignada, mas não podia puni-lo, e nem desejava, pois o amava; e assim voltou toda a ira contra a rival, a pobre Sila. Tomou plantas de poderes venenosos e misturou-as, com feitiçarias e encantações. Depois passou através da multidão de animais, vítimas de sua arte, e dirigiu-se à costa da Sicília, onde vivia Sila. Havia, no litoral, uma pequena baía, para onde Sila costumava ir, no calor do dia, a fim de respirar um ar mais fresco e banhar-se nas águas. Ali a deusa derramou a mistura venenosa e murmurou palavras mágicas de grande poder. Sila chegou, como de costume, e mergulhou na água até a cintura. Qual foi o seu horror ao perceber uma ninhada de serpentes e de monstros em torno dela! A princípio, não pôde imaginar que era uma parte dela própria e tentou deles fugir; mas, ao fugir, levava-os consigo e, quando tentou apalpar as pernas, suas mãos encontravam apenas as bocas escancaradas dos monstros. Sila ficou presa ao local. Seu gênio tornou-se tão horrível quanto sua forma, e ela se comprazia em devorar os inermes marinheiros que chegavam ao alcance de suas garras. Assim destruiu seis dos companheiros de Ulisses, e tentou destruir os navios de Enéias, até que foi transformada em rochedo e, como tal, ainda continua a ser o terror dos marinheiros. Keats, no poema "Endimião", oferece-nos uma nova versão do fim do episódio de Glauco e Sila. Glauco curva-se aos encantos de Circe, até que, por acaso, presencia suas bruxarias com os animais.1 Desgostoso com a traição e crueldade da deusa, tenta fugir, mas é capturado e Circe o expulsa, condenando-o a passar mil anos de decrepitude e sofrimento. Glauco volta ao mar e ali encontra o corpo de Sila, que a deusa não metamorfoseara, mas afogara. Glauco aprende que seu destino é este: se passar mil anos recolhendo os corpos dos amantes afogados, um jovem amado dos deuses surgirá para ampará-lo. Endimião cumpre essa profecia, resumindo a Glauco a mocidade e a Sila e todos os amantes afogados, a vida. O trecho seguinte conta a impressão de Glauco depois da "metamorfose marinha":

Mergulhei, para a vida ou para a morte.
O esforço de vencer o mar bem forte
Seria certamente. Surpreendido
Fiquei, ao me sentir, a vida ilesa,
Cercado pelas águas. A surpresa
Não me abandonou, dia após dia.
Como a avezinha, que se inicia
No vôo, pouco a pouco, passo a passo,
Até cortar, voando, o alto espaço,
Eu, pouco a pouco, as amplidões marinha
Fui conhecendo e tendo-as como minhas

A Mitologia Grega - Prosérpina.



Depois de Júpiter e seus irmãos terem derrotado os titãs e os expulsado para o Tártaro, um novo inimigo ergueu-se contra os deuses. Eram os gigantes Tífon, Briareu, Encélado e outros. Alguns deles tinham cem braços, outros respiravam fogo. Afinal, foram vencidos e enterrados vivos no Monte Etna, onde alguns continuam a lutar para se libertar, sacudindo toda a ilha com os terremotos. Sua respiração sai através da montanha e é o que os homens chamam de erupção vulcânica. A queda desses monstros abalou a terra, o que alarmou Plutão, receoso de que seu reino pudesse ser aberto à luz do sol. Presa dessa apreensão, ele entrou em seu carro, puxado por cavalos negros, e viajou pela terra, para verificar a extensão dos danos. Enquanto se achava empenhado nesse mister, Vênus, que estava sentada no Monte Erix, brincando com seu filho Cupido, olhou-o e disse: — Meu filho, toma tuas setas, com que vences todos, mesmo Jove, e crava uma delas no peito daquele sombrio monarca, que governa o reino do Tártaro. Por que deverá ele sozinho escapar? Aproveitar a oportunidade de ampliar o teu e o meu domínio. Não vês que mesmo no céu alguns desprezam nosso poder? Minerva, a sábia, e Diana, a caçadora, desafiamo-nos; e ali está a filha de Ceres, que ameaça seguir seu exemplo.

Agora, se tens qualquer consideração por teus próprios interesses e pelos meus, junta aquelas duas pessoas em uma só. O menino abriu a aljava e escolheu a mais aguda e fiel seta; depois, firmando o arco no joelho, distendeu a corda e desfechou a seta de ponta aguda bem no coração de Plutão. Há, no vale de Ena, um lago escondido no bosque, que o protege contra os ardentes raios do sol; o terreno úmido é coberto de flores, e a Primavera reina ali perpetuamente. Prosérpina lá se encontrava, brincando com suas companheiras, colhendo lírios e violetas, e enchendo com as flores seu cesto e seu avental, quando Plutão a viu, apaixonou-se por ela e raptou-a. Ela gritou, pedindo ajuda à mãe e às companheiras; e quando, apavorada, largou os cantos do avental e deixou cair as flores, sentiu, infantilmente, sua perda como um acréscimo ao seu sofrimento. O raptor excitou os cavalos, chamando-os cada um por seu nome e soltando sobre suas cabeças e pescoços as rédeas cor-de-ferro. Quando chegou ao Rio Cíano, e este se opôs à sua passagem, Plutão feriu a margem do rio com seu tridente, a terra abriu-se e deu-lhe passagem para o Tártaro. Ceres procurou a filha por todo o mundo. Aurora, dos louros cabelos, ao sair pela manhã, e Hespéria, ao trazer as estrelas ao anoitecer, ainda a encontraram ocupada na procura. Tudo foi em vão, porém. Afinal, cansada e triste, ela se sentou numa pedra e ali continuou sentada, durante nove dias e nove noites, ao ar livre, à luz do sol e ao luar, e sob a chuva. Era onde ora se ergue a cidade de Elêusis, então morada de um velho chamado Celeus. Ele estava no campo, colhendo bolotas e amoras silvestres e gravetos para alimentar o fogo. Sua filhinha conduzia para casa duas cabras e, ao aproximar-se da deusa, que aparecia sob o disfarce de uma velha, disse-lhe: — Mãe (e o nome foi suave aos ouvidos de Ceres) por que está sentada aí nessa rocha? O velho também parou, embora sua carga fosse pesada, e convidou Ceres a entrar em sua cabana. Ela recusou e ele insistiu. — Vai em paz — respondeu a deusa — e sê feliz em companhia de tua filha. Eu perdi a minha.

Ao falar, lágrimas — ou algo como lágrimas, pois os deuses não choram — escorreram-lhe pelo peito. O compassivo velho e a criança choraram com ela. Afinal, disse Celeus: — Vem conosco e não desprezes nosso teto humilde. Talvez tua filha te seja devolvida sã e salva. — Vamos — disse Ceres —, não posso resistir a tal apelo! Levantou-se da pedra e seguiu com os dois. Enquanto caminhavam, Celeus contou que seu único filho, um menino, estava doente, febril e sem sono. Ceres parou e colheu algumas papoulas. Ao entrarem na cabana, encontraram todos muito tristes, pois o estado do menino parecia desesperador. Metanira, sua mãe, recebeu atenciosamente a visitante, e a deusa, debruçando-se, beijou os lábios da criança enferma. Instantaneamente, a palidez abandonou-lhe o rosto e o vigor da saúde voltou-lhe ao corpo. Toda a família ficou deleitada — isto é, o pai, a mãe e a menina, pois não tinham criados. Puseram a mesa, e serviram coalhada e creme, maçãs e mel. Enquanto comiam, Ceres misturou caldo de papoula no leite que o menino estava tomando. Quando veio a noite e tudo estava quieto, ela levantou-se e, pegando o menino adormecido, passou-lhe as mãos pelos lábios e murmurou três vezes palavras de encantamento, depois foi colocá-lo nas cinzas. A mãe do menino, que estava observando o que a hóspede fazia, levantou-se, com um grito, e tirou a criança do fogo. Então Ceres assumiu sua própria forma e um divino esplendor espalhou-se em torno. Diante do assombro de todos, disse: — Mãe, foste cruel no amor ao teu filho. Eu ia torná-lo imortal, mas frustraste meus esforços. Não obstante, ele será grande e útil. Ensinará aos homens o uso do arado e as recompensas que o trabalho pode obter do solo cultivado. Assim dizendo, envolveu-se numa nuvem e, tomando seu carro, afastou-se. Ceres continuou a procurar a filha, passando de terra em terra, e atravessando mares e rios, até voltar à Sicília, de onde partira, e ficou de pé à margem do Rio Ciano, onde Plutão abrira uma passagem para os seus domínios. A ninfa do rio teria contado à deusa tudo que testemunhara, se não fosse o medo de Plutão; assim, apenas se aventurou a pegar a guirlanda que Prosérpina deixara cair em sua fuga e fazê-la descer pela correnteza do rio, até junto da deusa. Vendo-a, Ceres não teve mais dúvida sobre a perda da filha, mas ainda não conhecia a causa e lançou a culpa sobre a terra inocente. — Ingrato solo, que tornei fértil e cobri de ervas e grãos nutritivos, não mais gozarás de meus favores! — exclamou. Então, o gado morreu, o arado quebrou-se no sulco, as sementes não germinaram. Houve sol e chuva em demasia. As aves roubaram as sementes. Somente medravam os cardos e sarças. Ao ver isto, a fonte Aretusa intercedeu pela terra: — Não culpes a terra, deusa — exclamou. — Ela se abriu de má vontade para dar passagem à tua filha. Posso contar-te qual foi o seu destino, pois a vi. Esta não é minha terra natal; venho de Elis. Era uma ninfa dos bosques e comprazia-me na caça. Exaltavam minha beleza, mas eu não cuidava disso, e antes me vangloriava de minhas proezas venatórias. Certo dia, estava voltando do bosque, aquecida pelo exercício, quando vi um regato que corria sem ruído, tão claro que podiam contar-se as pedrinhas do fundo. Os salgueiros o sombreavam e as margens, cobertas de relva, desciam até à água, numa rampa suave. Aproximei-me, toquei a água com o pé. Entrei até ficar com água pelo joelho e, não contente com isto, deixei minhas vestes nos salgueiros e entrei no rio. Enquanto lá estava, ouvi um murmúrio indistinto, vindo do fundo do rio, e apressei-me em fugir para a margem mais próxima. — Por que foges, Aretusa? — disse a voz. — Sou Alfeu, o deus deste rio. Fugi e ele me perseguiu. Não era mais rápido do que eu, mas era mais forte, e alcançou-me, quando minhas forças fraquejaram. Afinal, exausta, gritei pedindo a ajuda de Diana: — Ajuda-me, deusa! Ajuda tua devota! A deusa ouviu-me e envolveu-me logo em espessa nuvem. O rio-deus procurou-me, ora aqui, ora ali, e duas vezes aproximou-se de mim, mas não conseguiu encontrar-me. — Aretusa! Aretusa! — gritava. Oh, como eu tremia! Como o cordeirinho, que ouve o lobo uivando fora do redil. Um suor frio cobriu-me, meus cabelos caíram como correntes de água e onde estavam meus pés formou-se uma lagoa. Em resumo: em menos tempo do que levo para contar, tornei-me uma fonte. Mas ainda sob essa forma, Alfeu reconheceu-me e tentou misturar sua corrente com a minha. Diana abriu o solo e eu, tentando escapar à perseguição, mergulhei na caverna e, através das entranhas da terra, cheguei aqui à Sicília. Ao passar pelas camadas inferiores da terra, vi sua Prosérpina. Ela estava triste, mas já não refletia susto na fisionomia. Seu aspecto era o de uma rainha: a rainha do Érebo; a poderosa esposa do monarca do reino dos mortos. Ao ouvir isto, Ceres ficou perplexa durante um momento, depois virou o seu carro para o céu e correu a apresentar-se diante do trono de Jove. Contou a história de sua aflição e implorou a Júpiter que intercedesse, para conseguir a restituição de sua filha. Júpiter consentiu, com uma condição: a de que Prosérpina não tivesse tomado qualquer alimento, durante sua permanência no mundo inferior; de outro modo, as Parcas proibiam a sua libertação. E, assim, Mercúrio foi mandado, acompanhado de Primavera, para pedir Prosérpina a Plutão. O ardiloso monarca consentiu, mas, infelizmente, a donzela aceitara uma romã que Plutão lhe oferecera e sugara o doce suco de algumas sementes. Isso foi suficiente para impedir sua libertação completa. Fez-se um acordo, contudo, pelo qual Prosérpina passaria metade do tempo com sua mãe e o resto com seu marido Plutão.

Ceres deu-se por satisfeita com esse arranjo e restituiu à terra seus favores. Lembrou-se, então, de Celeus e de sua família, e da promessa feita ao menino Triptólemo. Quando o menino cresceu, ensinou-lhe o uso do arado e como semear. Levou-o em seu carro, puxado por dragões alados, a todos os países da terra, aquinhoando a humanidade com cereais valiosos e com o conhecimento da agricultura. Depois de seu regresso, Celeus construiu em Elêusis um magnífico templo dedicado a Ceres e estabeleceu o culto da deusa, sob o nome de mistérios de Elêusis, que, no esplendor e solenidade de sua observância, ultrapassavam todas as demais celebrações religiosas entre os gregos. Não pode haver dúvida de que esta história de Ceres e Prosérpina é uma alegoria. Prosérpina representa a semente do trigo, que, quando enterrada no chão, ali fica escondida, isto é, levada pelo deus do mundo subterrâneo. Depois reaparece, isto é, Prosérpina é restituída a sua mãe. A primavera a faz voltar à luz do dia. Milton faz referência ao episódio de Prosérpina, no Livro IV do Paraíso Perdido:

Não era, não, de Ena o lindo campo
Onde colhendo flores, Prosérpina,
Ela mesma uma flor, pelo sombrio
Deus do reino dos mortos foi roubada,
O que custou a Ceres tantas penas.


Hood, em sua "Ode à Melancolia", recorre à mesma alusão, de maneira muito feliz:

Perdoa, se com a dor futura, esqueço
A presente ilusão,
Como perdeu as flores Prosérpina
A vista de Plutão.


O Rio Alfeu de fato desaparece embaixo da terra, durante uma parte de seu curso; correndo por canais subterrâneos, até voltar à superfície de novo.

Dizia-se que a fonte siliciana de Aretusa era proveniente da mesma corrente, que, após atravessar o mar, ressurgia na Sicília. Daí a lenda de que uma taça atirada no Alfeu aparecia em Aretusa. É a essa fábula do curso subterrâneo do Alfeu que Coleridge alude em seu poema "Kubla Khan":

Soberba, Kubla Khan em Xanadu ergueu
Imponente mansão
Onde corre, sereno, o Rio Sacro Alfeu
Que sob o próprio mar, em grutas se escondeu,
Bem no fundo do chão.


Em um de seus poemas juvenis, Moore assim se refere ao mesmo fato, e ao hábito de atirar guirlandas e outros objetos leves às águas do rio, para serem levados pela corrente e reaparecerem depois:

Que divina alegria, minha amada,
A das almas irmãs quando se encontram,
Como o rio sagrado cuja água
Corre através de grutas subterrâneas,
Carregando guirlandas e coroas
Pelas virgens olímpicas lançadas
Como tributo à ninfa de Aretusa.
Que alegria, que júbilo seria
O seu, de se encontrar com a fonte amada!

A Mitologia Grega - Midas.



Certa vez, Baco deu por falta de seu mestre e pai de criação, Sileno. O velho andara bebendo e, tendo perdido o caminho, foi encontrado por alguns camponeses que o levaram ao seu rei, Midas. Midas reconheceu-o, tratou-o com hospitalidade, conservando-o em sua companhia durante dez dias e dez noites, no meio de grande alegria. No décimo-primeiro dia, levou Sileno de volta e entregou-o são e salvo a seu pupilo. Baco ofereceu, então, a Midas o direito de escolher a recompensa que desejasse, qualquer que fosse ela. Midas pediu que tudo em que tocasse imediatamente fosse mudado em ouro. Baco consentiu embora pesaroso por não ter ele feito uma escolha melhor. Midas seguiu caminho, jubiloso com o poder recém-adquirido, que se apressou a pôr em prova. Mal acreditou nos próprios olhos quando viu um raminho que arrancara de um carvalho transformar-se em ouro em sua mão. Segurou uma pedra; ela mudou-se em ouro. Pegou um torrão de terra; virou ouro. Colheu um fruto na macieira; ter-se-ia dito que furtara o jardim das Hespérides. Sua alegria não conheceu limite e, logo que chegou à casa, ordenou aos criados que servissem um magnífico repasto. Então verificou, horrorizado, que, se tocava o pão, este enrijecia em suas mãos; se levava a comida à boca, seus dentes não conseguiam mastigá-la. Tomou um cálice de vinho, mas a bebida desceu-lhe pela garganta como ouro derretido.

Consternado com essa aflição sem precedente, Midas lutou para livrar-se daquele poder: detestava o dom que tanto cobiçara. Tudo em vão, porém; a morte por inanição parecia aguardá-lo. Ergueu os braços, reluzentes de ouro, numa prece a Baco, implorando que o livrasse daquela fulgurante destruição. Baco, divindade benévola, ouviu e consentiu. — Vai ao Rio Pactolo — disse —, segue a corrente até a fonte que lhe dá origem, ali mergulha tua cabeça e teu corpo e lava tua culpa e o teu castigo. Midas assim fez e mal tocara as águas, antes mesmo de terem passado para elas o poder de transformar tudo em ouro, as areias do rio tornaram-se auríferas, e assim continuam até hoje. Dali por diante, Midas, odiando a riqueza e o esplendor, passou a morar no campo, longe da cidade, e a cultuar Pã, o deus dos campos. Certa ocasião, Pã teve a temeridade de comparar sua música à de Apolo, e de desafiar o deus da lira para uma competição. O desafio foi aceito, e Tmolo, o deus da montanha, foi escolhido como árbitro. O velho acomodou-se e tirou as árvores de seus ouvidos, para escutar. A um dado sinal, Pã tocou sua avena e, com sua rústica melodia, deu grande satisfação a si mesmo e a seu fiel devoto Midas, que se achava presente. Em seguida, Tmolo virou a cabeça para o Rei Sol, e todas as árvores acompanharam seu gesto. Apolo ergueu-se, com a testa enfeitada do louro parnasiano, e a túnica de púrpura tíria arrastando-se no chão. Com a mão esquerda, segurava a lira, que dedilhava com a direita. Empolgado com a harmonia, Tmolo imediatamente concedeu a vitória ao deus da lira, e todos concordaram com o julgamento, menos Midas, que discordou e pós em dúvida a justiça do prêmio. Apolo não tolerou que um par de orelhas de tão depravados ouvidos continuasse a ter a forma humana, e fê-las aumentar de tamanho, tornarem-se peludas, por dentro e por fora, e adquirirem movimento próprio; em suma: tornaram-se perfeitamente iguais às orelhas de um burro. O Rei Midas sentiu-se bastante mortificado com a deformação, mas consolou-se, lembrando-se de que era possível esconder o infortúnio, o que tentou, por meio de um amplo turbante. O cabeleireiro, porém, ficou, evidentemente, a par do segredo. Teve ordem de não revelá-lo, sendo ameaçado de terrível castigo, se se atrevesse a desobedecer. Verificou, porém, que era demais para sua discrição guardar o segredo; e, assim, foi ao campo, abriu um buraco no chão, e, abaixando-se, contou o caso, em voz baixa, e tampou o buraco. Pouco depois, crescia no local uma touceira de juncos que, logo que atingiu certo tamanho, começou a contar o caso em sussurro, e assim faz até hoje, todas as vezes que a brisa sopra sobre o local. A história do Rei Midas tem sido contada por outros com algumas variantes. Dryden, em seu poema "História do Banho", atribui à rainha, esposa de Midas, a revelação do segredo:

A ninguém o segredo das orelhas
Midas ousou confiar, senão à esposa.


Midas era rei da Frígia e filho de Górdio, um pobre camponês, que foi escolhido pelo povo para rei, em obediência à profecia do oráculo, segundo a qual o futuro rei chegaria numa carroça. Enquanto o povo estava deliberando, Górdio chegou à praça pública numa carroça, com a mulher e o filho. Tornando-se rei, Górdio dedicou a carroça à divindade do oráculo, amarrando-a com um nó, o famoso nó górdio, a propósito do qual se dizia que, quem fosse capaz de desatá-lo, tornar-se-ia senhor de toda a Ásia. Muitos tentaram em vão, até que Alexandre Magno chegou à Frígia, com suas conquistas. Tentou também desatar o nó, com o mesmo insucesso dos outros, até que, impacientando-se, arrancou da espada e cortou-o. Quando, depois, conseguiu subjugar toda a Ásia, começou-se a pensar que ele cumprira os termos do oráculo em sua verdadeira significação.

A Mitologia Grega - Baucis e Filêmon.



Numa certa montanha da Frígia há, lado a lado, uma tília e um carvalho, rodeados por um muro baixo. Não muito distante do local fica um pântano, outrora terra habitável, mas agora cheia de lagos, e refúgio das aves aquáticas e corvos marinhos. Certa vez, Júpiter, sob forma humana, visitou a região, em companhia de Mercúrio (o do caduceu), sem suas asas. Apresentaram-se como viajantes fatigados, a muitas portas, procurando abrigo e repouso, mas encontraram todas fechadas, pois era tarde, e os poucos hospitaleiros habitantes não se dispuseram a levantar-se para ir recebê-los. Afinal, uma moradia humilde acolheu-os, uma pequena choupana, onde uma piedosa velha, Baucis, e seu marido, Filêmon, unidos quando jovens, haviam envelhecido juntos. Sem se envergonhar de sua pobreza, eles a tornaram suportável graças à moderação dos desejos e ao bom gênio. Não havia necessidade ali de procurar senhor e servo; os dois constituíam toda a casa, servos e senhores a um só tempo. Quando os hóspedes celestiais transpuseram o umbral humilde e abaixaram a cabeça para passar sob a porta muito baixa, o velho trouxe uma cadeira, sobre a qual Baucis, atenciosa e prestativa, estendeu um pano, pedindo-lhes que se assentassem. Em seguida, ela retirou as brasas do meio das cinzas e reavivou o fogo, alimentando-o com folhas e casco seco de madeira, e, com o pouco fôlego que lhe restava, soprou as chamas. Trouxe de um canto achas de madeira seca, quebrou-as e colocou-as sob a pequena chaleira. Seu marido colheu algumas ervas na horta e a velha preparou-as para a panela. Filêmon tirou com um gancho um naco de toucinho que pendia da chaminé, cortou um pedacinho e colocou-o na panela com as ervas, deixando o restante para outra ocasião. Encheram, em seguida, de água quente uma gamela de faia, a fim de que os hóspedes pudessem lavar-se. No banco destinado aos hóspedes foi colocada uma almofada com recheio de alga, e uma toalha, que só aparecia nas grandes ocasiões, foi colocada por cima. A velha, trazendo um avental, pôs a mesa, com as mãos trêmulas. Uma perna da mesa era mais curta que as outras, mas uma pedra colocada embaixo restabelecera o equilíbrio. Arrumada a mesa, Baucis passou sobre ela algumas ervas de cheiro agradável, e foram colocadas algumas azeitonas da casta Minerva, algumas conservas em vinagre, e acrescentaram-se rabanetes e queijo, com ovos esquentados no borralho. O repasto foi servido em pratos de barro e uma bilha de barro, com copos de madeira, achava-se entre as travessas. Quando tudo ficou pronto, colocou-se na mesa a sopa fumegante. Ajuntou-se algum vinho, não do mais velho, e, por sobremesa, maçãs e mel silvestre. Ora, enquanto o repasto prosseguia, os velhos ficaram assombrados ao ver que o vinho, à medida que era servido, renovava-se no jarro. Tomados de terror, Baucis e Filêmon reconheceram seus hóspedes celestiais, caíram de joelhos e imploraram perdão pela pobreza do acolhimento. Possuíam um velho ganso, que conservavam como guardião de sua humilde choupana, e acharam que ele poderia ser sacrificado em honra dos hóspedes. Mas o ganso, muito ágil, correndo e batendo as asas, escapou à perseguição dos velhos e, afinal, refugiou-se entre os próprios deuses. Estes não permitiram que ele fosse morto, e disseram: — Somos deuses. Esta aldeia inospitaleira sofrerá a pena de sua impiedade. Somente vós escapareis ao castigo. Deixai esta casa e vinde conosco para o alto daquele monte. Os dois apressaram-se em obedecer e, apoiados em seus bastões, puseram-se a galgar a íngreme subida. Estavam à distância de um tiro de seta do alto, quando, voltando os olhos para trás, avistaram toda a região transformada num lago, estando de pé apenas sua casa. Enquanto maravilhavam-se com esse espetáculo e lamentavam o destino de seus vizinhos, sua velha casa transformou-se num templo. Colunas tomaram o lugar dos rudes postes, o colmo tornou-se amarelo e transformou-se num teto dourado, o chão cobriu-se de mármore, as portas enriqueceram-se com baixos-relevos e ornamentos de ouro. Então Júpiter falou, com benevolência: — Excelente velho, e tu, mulher, digna de tal marido, dizei-me quais são os vossos desejos. Que favor quereis de nós? Filêmon consultou Baucis, durante alguns momentos, depois manifestou aos deuses seus desejos comuns: — Queremos ser os sacerdotes e guardiães deste vosso templo. E, como passamos toda a nossa vida com amor e concórdia, desejamos que a mesma hora exata nos tire a ambos a vida, e que eu não viva para ver o túmulo de Baucis, nem ela para ver o meu. Seu desejo foi satisfeito. Os dois foram os guardiães do templo enquanto viveram. Quando se tinham tornado muito velhos e estavam um dia de pé diante da escada do edifício sagrado, contando a história do lugar, Baucis viu Filêmon começar a cobrir-se de folhas, e Filêmon viu Baucis transformar-se da mesma maneira. Tufos de folhas já haviam crescido em suas cabeças e os dois continuavam a trocar palavras de despedida, enquanto podiam falar.

— Adeus, querida esposa. Adeus, querido esposo — diziam juntos, até o momento em que a nodosa casca lhes fechou a boca. O pastor tianeano ainda mostra as duas árvores, uma ao lado da outra, metamorfoses de duas boas pessoas. A história de Baucis e Filêmon foi imitada por Swift, em estilo burlesco, sendo os autores da transformação dois santos errantes, e a casa sendo transformada em capela, da qual Filêmon se tornou o vigário. Eis um trecho da mesma:

Mal se atrevem a falar, quando o telhado,
Devagar, começou a levantar-se.
Ergue-se cada viga, cada caibro.
As paredes pesadas se alteiam,
A chaminé alteia-se e alarga-se,
Em alto campanário se transforma.
Sobe a chaleira, até bater no teto,
Num barro te do teto fica presa,
Invertida, porém, para mostrar
A força de atração da gravidade,
Que em vão se exerce, pois força contrária
Sua queda detém e ali suspensa
A conserva, vencendo a gravidade.
Já não é mais chaleira, mas é sino.
Um girador de espeto de madeira,
Sem uso há tanto tempo que da arte
De assar a carne, quase se esquecera,
Transforma-se, de súbito e de todo,
Um recheio de rodas adquire
Para maior assombro e maravilha,
Quanto mais rodas tem mais lerdo fica.
Muito embora tivesse pés de chumbo,
Antes girava velozmente, e agora
Numa hora inteira, como que tolhido,
Uma só polegada mal avança.
O girador e a chaminé, amigos
Inseparáveis, não se separaram:
A chaminé é torre e seu amigo
Sem dela se afastar, sempre a seu lado,
O relógio virou do campanário,
Não esqueceu, contudo, os velhos dias,
Dos cuidados caseiros, não descuida
E ao meio-dia, dando horas, lembra
À cozinheira que queimar não deixe
A carne que ele próprio assar não pôde.
A pesada poltrona já começa
Ao mesmo tempo, como enorme lesma,
A deslizar ao longo da parede
E, maravilha!, em púlpito se torna.
O leito pesadão, de estilo antigo,
E em banco de igreja transformado,
Mas conservando a antiga natureza,
Pois quem nele se senta sente sono.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A Mitologia Grega - Faetonte [PARTE 2/2]



— Ó pai dos deuses, se mereci este tratamento e se é teu desejo que eu pereça pelo fogo, por que poupas teus raios? Deixa-me, pelo menos, cair por tuas mãos. E esta a recompensa de minha fertilidade, de meus obedientes serviços? Foi para isso que forneci erva para o gado, frutos para os homens e incenso para os teus altares? Mas, se sou indigna de consideração, que fez meu irmão Oceano para merecer tal destino? Se nenhum de nós pode provocar tua piedade, pensa, peço-te, em teu próprio céu e vê como estão fumegantes ambos os pólos que sustentam teu palácio, que cairá, se eles forem destruídos. Atlas fraqueja e mal sustenta sua carga. Se o mar, a terra e o céu perecerem, cairemos no antigo Caos. Salva o que ainda nos resta da chama devoradora. Pensa em nossa salvação, neste momento fatal! Assim falou a Terra, e, vencida pelo calor e pela sede, nada mais pôde dizer. Então, Júpiter onipotente, invocando o testemunho de todos os deuses, inclusive daquele que emprestara o carro, e mostrando-lhes que tudo estaria perdido, a não ser que fosse aplicado um remédio urgente, subiu à torre altaneira de onde espalha as nuvens sobre a terra e arremessa os recurvados raios. Desta vez, porém, não havia uma só nuvem que pudesse ser usada para proteção da terra, nem chuva que pudesse ser lançada. Júpiter trovejou e, erguendo um raio incandescente na mão direita, lançou-o contra o condutor do carro e arrancou-o, ao mesmo tempo, do seu lugar e da existência! Faetonte, com os cabelos em chama, caiu de cabeça para baixo, como uma estrela cadente que marca o céu com seu brilho enquanto cai, e Eridano, o grande rio, recebeu-o e refrescou seu corpo ardente. As náiades italianas ergueram-lhe um túmulo e gravaram estas palavras sobre a pedra:

Aqui jaz Faetonte, que o paterno
Carro ousou dirigir, em vão.
Contudo Honrou-o a nobre audácia de tentá-lo


Suas irmãs, as Helíades, enquanto lamentavam seu destino, transformaram-se em choupos, nas margens do rio, e suas lágrimas, que continuavam a cair, transformaram-se em âmbar, ao atingir a água.

Milman, em seu poema "Samor", faz a seguinte alusão à história de Faetonte:

Como quando o universo horrorizado
Jazia mudo e quieto, quando o filho
Do Sol, dizem os poetas, o paterno
Carro levava por atalhos falsos.
Até que Jove o fulminou, e o mísero
Afogou-se no golfo junto ao qual
As irmãs, os seus ramos agitando,
Por ele choram lágrimas de âmbar.


Nos belos versos em que Walter Savage Landor descreve a concha marinha, há uma alusão ao palácio e ao carro do Sol. A ninfa da água diz:

Tenho sinuosas conchas, ostentando
Os matizes da pérola e que o brilho
Fazem lembrar do majestoso pórtico
Do palácio do Sol.

A Mitologia Grega - Faetonte [PARTE 1/2]



Faetonte era filho de Apolo e da ninfa Climene. Certo dia, um companheiro de escola do menino zombou da idéia de ser ele filho de um deus, e Faetonte, furioso e envergonhado, contou o ocorrido a sua mãe. — Se sou, na verdade, de origem celeste — disse — dá-me, minha mãe, uma prova disso, que me assegure o direito de reclamar a honra. Climene estendeu os braços para o céu, exclamando: — Tomo por testemunha o Sol que nos olha, de que te disse a verdade. Se menti, seja esta a última vez que contemplo esta luz. Não é preciso muito trabalho para tu mesmo ires averiguar; a terra onde mora o Sol fica próxima da nossa. Vai perguntar-lhe se te reconhece como filho. Faetonte ouviu deleitado estas palavras. Viajou para a índia, que fica junto das regiões do nascente, e cheio de esperança e de orgulho aproximou-se do destino, de onde seu pai começa o curso. O palácio do Sol erguia-se muito alto, sobre colunas, reluzente de ouro e de pedras preciosas, com tetos de marfim polido e as portas de prata. A perfeição da obra sobrepujava o material. Nas paredes, Vulcano havia representado a terra, o mar e o céu, com seus habitantes. No mar, estavam as ninfas, algumas divertindo-se nas ondas, algumas correndo montadas em peixes, enquanto outras, sentadas nos rochedos, secavam os cabelos esverdeados pelo mar. Seus rostos não eram inteiramente semelhantes entre si, nem inteiramente diferentes, mas tal como devem ser os rostos de irmãs. A terra mostrava as cidades, florestas, rios e as divindades rústicas. Dominando tudo, estava esculpida a imagem do glorioso céu, e, nas portas de prata, os signos do zodíaco, seis de cada lado. O filho de Climene subiu a escadaria de acesso e entrou no palácio de seu pai. Aproximou-se, mas parou a distância, pois a luz era mais forte do que podia suportar. Febo, ostentando uma veste de púrpura, achava-se sentado num trono, onde brilhavam diamantes. Ao seu lado direito e ao esquerdo, estavam de pé o Dia, o Mês e o Ano e, a intervalos regulares, as Horas. A Primavera lá estava, com a cabeça coroada de flores, o Verão livre de seus trajos, com uma guirlanda de hastes de trigo maduros, o Outono com os pés manchados do caldo da uva e o Inverno com os cabelos cobertos de granizo. Cercado por estes ajudantes, o Sol, com os olhos que vêem todas as coisas, contemplou o jovem ofuscado com a novidade e o esplendor da cena e perguntou-lhe o motivo da visita. — O luz do mundo ilimitado, Febo, meu pai, se me permites dar-te este nome, oferece-me uma prova, peço-te, pela qual possa ser reconhecido como teu filho. Calou-se. O pai, pondo de lado os raios que brilhavam em torno da cabeça, fê-lo aproximar-se e disse-lhe, abraçando-o: — Meu filho, mereces não ser repudiado e confirmo o que tua mãe te disse. Para pôr fim às tuas dúvidas, pede o que quiseres, e tua vontade será satisfeita. Tomo por testemunha aquele horrível lago, que nunca vi, mas pelo qual juram os deuses em seus compromissos mais solenes. Faetonte imediatamente pediu para ter licença de dirigir por um dia o carro do sol. O pai arrependeu-se da promessa; três e quatro vezes, sacudiu a radiosa cabeça, advertindo:

Calou-se; mas o jovem rejeitou todos os seus conselhos e manteve o pedido. Assim, tendo resistido tanto quanto pôde, Febo afinal encaminhou-se para onde estava o soberbo carro. Era de ouro, presente de Vulcano; o eixo era de ouro, o timão de ouro e as rodas de ouro, os raios das rodas de prata. Ao longo da boléia, havia fileiras de topázios e diamantes, que refletiam o brilho do sol. Enquanto o ousado jovem olhava com admiração, Aurora abriu as portas de púrpura do nascente e mostrou o caminho juncado de rosas. As estrelas retiraram-se, conduzidas pela Estrela d'Alva, que, última de todas, retirou-se também. Febo, quando viu a Terra começando a brilhar e a Lua preparando-se para retirar-se, ordenou às Horas que arreassem os cavalos. Elas obedeceram: tiraram das espaçosas cocheiras os corcéis alimentados com ambrosia e prenderam as rédeas. Então, o pai umedeceu o rosto do filho com um ungüento poderoso, tornando-o capaz de suportar o calor da chama. Colocou os raios em sua cabeça e, com um suspiro agoureiro, disse: — Se, pelo menos nisso, meu filho, vais seguir meus conselhos, poupa o chicote, e sustenta as rédeas com força. Os cavalos seguem velozes por seu próprio gosto; o trabalho é contê-los. Não deves seguir o caminho direto entre os cinco círculos, mas afastar para a esquerda. Conserva o limite da zona mediana, evitando igualmente o norte e o sul. Verás as marcas das rodas e elas te servirão de guia. E, para que o Céu e a Terra possam receber cada um a quantidade devida de calor, não subas demais, senão incendiarás as moradas celestes, nem andes muito baixo, para que não ateies fogo à Terra; o meio é o caminho mais seguro e melhor.2 E, agora, deixo-te entregue à tua sorte, que espero melhor para ti do que tu mesmo fizeste. A noite está saindo das portas ocidentais e não podemos atrasar por mais tempo. Toma as rédeas; mas, se, no último momento, teu coração fraquejar, e tirares proveito dos meus conselhos, fica aqui onde estás, em segurança, e deixa-me iluminar e aquecer a Terra. O ágil jovem subiu no carro de um pulo, e, de pé, segurou as rédeas, deleitado, dizendo palavras de agradecimento ao relutante pai. Enquanto isto, os cavalos enchiam o ar com seus relinchos e o ruído de sua respiração ardente, e escavavam o chão, com impaciência. As barras foram descidas e as ilimitadas planícies do universo estenderam-se diante deles. Investiram e fenderam as primeiras nuvens e passaram à frente das brisas matinais que haviam partido também do nascente. Os cavalos logo perceberam que a carga que transportavam era mais leve que a de costume; e como um navio sem lastro é sacudido de um lado para o outro no mar, assim o carro, sem seu peso costumeiro, era sacudido como se estivesse vazio. Os corcéis avançaram, deixando o caminho sempre trilhado. Faetonte está assustado e não sabe como guiar os animais; e nem que soubesse teria a força necessária. Então, pela primeira vez, a Ursa Maior e a Menor foram abrasadas de calor e teriam querido, se tal fosse possível, mergulhar na água; e a Serpente, que jaz enroscada em torno do Pólo Norte, entorpecida e inofensiva, com o calor sentiu reviver sua fúria. O Boeiro, dizem, fugiu, embora dificultado pelo peso de seu arado e de todo desacostumado aos movimentos rápidos. Quando o desventurado Faetonte baixou os olhos para a terra, que agora se desdobrava em grande extensão embaixo dele, empalideceu e seus joelhos bateram um contra o outro de pavor. A despeito do clarão que o rodeava, seus olhos turvaram-se. Desejou jamais ter tocado os cavalos paternos, jamais ter sabido sua origem, jamais ter insistido em seu pedido. É levado como uma embarcação arrastada pela tempestade, quando o piloto nada mais pode fazer e limita-se às preces. Que fazer? Grande parte do caminho celeste ficara para trás, mas muito mais restava pela frente. Volta os olhos de uma direção para a outra; ora para o ponto de onde começara a corrida, ora para os reinos do poente, que deveria alcançar. Perdera o domínio de si mesmo e não sabia o que fazer — se encurtar as rédeas ou se afrouxá-las; esquecera os nomes dos cavalos. Vê com terror as monstruosas formas espalhadas pela superfície do céu. Aqui, Escorpião estendia seus dois grandes braços, com a cauda e as garras recurvadas estendendo-se por dois signos do zodíaco. Quando o jovem o viu, ressumando veneno e ameaçando com os ferrões, sua coragem fraquejou e as rédeas lhe caíram das mãos. Sentindo-as soltas em suas costas, os cavalos avançaram e, sem restrições, penetraram em regiões desconhecidas do céu, entre as estrelas, arrastando o carro em lugares sem estrada, ora a grande altura, ora quase junto da terra. A Lua viu, com assombro, o carro de seu irmão correndo abaixo do seu próprio. As nuvens começaram a esfumaçar e os cumes das montanhas a se incendiar; os campos tornaram-se ressequidos de calor, as plantas murcharam, as árvores queimavam-se com seus ramos copados, as colheitas estavam em chamas! Incendiavam-se as montanhas cobertas de florestas. Atos, o Taurus, o Tmolo e o Etna; Ida, outrora celebrada por suas fontes, agora secas; Hélicon, o monte das musas, e o Hemo; o Etna, com fogo por fora e por dentro, o Parnaso, com seus dois picos, e o Ródope, obrigado, afinal, a perder sua coroa de neve. Seu clima frio não constituiu proteção para a Cítia, o Cáucaso incendiou-se; incendiaram-se o Ossa e o Pindo, e o Olimpo, maior que ambos; os Alpes, que tão altos se erguem no ar, e os Apeninos, coroados de nuvens. Faetonte contemplou o mundo em chamas e sentiu o calor intolerável. O ar que respirava era como o ar de uma fornalha, cheio de cinza, e a fumaça estava negra como breu. Avançou sem saber para onde. Então, acredita-se, o povo da Etiópia tornou-se negro, pelo fato de o sangue ser forçado a subir tão subitamente à superfície, e formou-se, pela seca, o deserto líbico, nas condições em que permanece até hoje. As ninfas das fontes, com os cabelos desgrenhados, choravam suas águas, e os rios também não tinham proteção entre suas margens: o Tanaus fumegava, e o Caico, o Xantux e Meandro, o Eufrates babilônico e o Ganges, o Tejo, com suas areias auríferas, e o Caister, onde se reúnem os cisnes. O Nilo fugiu e escondeu suas cabeceiras no deserto, onde ainda continuam escondidas. No ponto em que costumava descarregar no mar suas águas, através de sete bocas, apenas restaram sete canais secos. A terra ressequida criou fendas, através das quais a luz penetrou no Tártaro, amedrontando o rei das trevas e a rainha sua esposa. O mar evaporou-se. Onde antes era água, formou-se uma planície seca; e as montanhas que jazem por baixo das ondas ergueram a cabeça e tornaram-se ilhas. Os peixes procuraram as últimas profundidades e os delfins já não se atreviam a brincar à superfície, como de costume. Até mesmo Nereu e sua esposa, Dóris, com as Nereidas, suas filhas, buscaram as grutas mais profundas para refúgio. Três vezes Netuno tentou erguer a cabeça acima da superfície da água, e três vezes teve de recuar, com o calor. A terra, embora cercada, como estava, pelas águas, com a cabeça e os ombros nus, protegendo o rosto com as mãos, olhou para o céu e, com voz enrouquecida, dirigiu-se a Júpiter:

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